São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Imagens e palavras

CABRERA INFANTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Longa é a história da relação entre a literatura e o cinema. Menos longa e talvez mais importante seja a relação entre o cinema e a literatura.
Apesar de suas origens como invenção visual, o cinema almejou o prestígio da literatura. A primeira cena de amor de "O Beijo de May Irving e John C. Rice", em 1896, que poderia ser considerada um ato de puro cinema erótico, vem de uma peça de teatro, "A Viúva Jones". Méliès, tão inventivo, inspirou-se em adaptações de H. G. Wells e de Júlio Verne.
Um dos grandes sucessos do cinema em todo o mundo foi "O Assassinato do Duque de Guise" (1908), baseado num texto literário e teatral. Houve, certamente, bem no princípio, um grande sucesso originado no cinema, com recursos cinematográficos, "O Grande Roubo do Trem" ("The Great Train Robbery", 1903), a que se atribui não só a invenção do close-up, mas de algo mais importante, a criação de um gênero que Lumière não criou, o western.
O primeiro longa-metragem exibido nos Estados Unidos, "A Rainha Elizabeth" ("Queen Elizabeth", 1912), foi um veículo para que Sarah Bernhardt mostrasse toda sua histrionice. Os primeiros críticos de cinema, como o poeta americano Vachel Lindsay, vinham da literatura. Béla Balázs, ou melhor, Balas, outro esteta precoce, foi libretista para Béla Bartók e amigo de Béla Lugosi, cujas reuniões noturnas em Buda e em Peste foram as Noites de Velas, belas. Mas Balas produziu uma frase famosa já em 1924: "O cinema está prestes a inaugurar uma nova direção em nossa cultura".
Essa nova direção não foi produzida por uma estética e sim, como sempre no cinema, por uma tecnologia, neste caso o som, que deu lugar ao cinema falado três anos mais tarde. Mas, ao contrário do que pensava Lindsay e do que pregava Balázs, o cinema tornou-se mais teatral e transformou-se em the talkies, os que falam —e como falavam.
O ato pioneiro de La Bernhardt desencadeou uma avalanche de atores de teatro, de diretores de teatro e de escritores de teatro. Shakespeare sempre foi um dos favoritos do cinema, que realizou recentemente muitas versões de suas obras, nunca bem-sucedidas enquanto tentaram, inutilmente, durante o cinema mudo, tornar visual a poesia do Bardo, que sempre foi uma música de palavras. E não faltaram as esquisitices: a atriz dinamarquesa Asta Nielsen fez, em 1920, uma versão muda de "Hamlet", em que a senhora Nielsen não interpretava nem Ofélia nem a rainha Gertrudes, e sim o próprio príncipe!
Mas no zênite do som, nos anos 30, ocorreram transfigurações. Houve um filme chamado "Mimi", que era "La Bohème" —sem música. No ano seguinte, a Metro produziu uma ambiciosa versão de "Romeu e Julieta", por William Shakespeare —com "diálogo adicional de Talbot Jennings". Felizmente o som tornou possíveis comédias como "Suprema Conquista" (de Howard Hawks), "Levada da Breca" (de Hawks) e "Meia-Noite" (de Mitchell Leisen). Permitiu também a criação de uma obra-prima absoluta, que é a estranha simbiose entre o teatro, o rádio e o expressionismo, tudo regado por uma literatura vinda de lugar nenhum mas feita para o cinema: "Cidadão Kane" (de Orson Welles). A partir desta obra-prima, o cinema não era mais feito de literatura, mas fazia literatura por outros meios, excepcionalmente visuais.
O cinema, por sua vez, influiu na literatura, e ao mesmo tempo utilizou a literatura com fins próprios. Uma mostra disso são os diálogos de Hemingway, que modelaram todas as falas do cinema, desde "O Último Vôo" ("The Last Flight", de William Dieterle), em 1931, até Quentin Tarantino em "Tempo de Violência" ("Pulp Fiction", 1994), cujas conversas não seriam possíveis se não tivesse existido a esticomitia (diálogo em versos) de Hemingway.
Outra viagem de ida e volta é "O Beijo da Mulher Aranha", de Hector Babenco. Este filme deve não apenas seus diálogos, mas também suas imagens, ao romance de Manuel Puig. Mas Puig, em literatura, não existiria sem o cinema, num perfeito exemplo do dilema do ovo e da galinha: o que Puig criou, quem o criou? Um filme ideal seria feito de uma história de Puig por Tarantino: o cinema como alimento de si mesmo. Essa é "a nova direção" que disparava Balas, Béla: belas balas.

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