São Paulo, terça-feira, 28 de março de 1995
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Esqueçam quem eu fui

O presidente Fernando Henrique Cardoso nega, sempre, que tenha dito "esqueçam o que escrevi".
No entanto, o discurso do presidente em São João do Jaguaribe (CE), na sexta-feira, parece ter sido feito não só para que a sociedade esquecesse o que ele escreveu, mas também quem ele é —ou foi.
O sociólogo antipopulista e, por extensão, antidemagógico desaparece em um oceano de palavras demagógicas. O político do combate ao autoritarismo é tragado em um festival de personalismo, a ponto de ter usado 12 vezes a palavra "eu", sem contar as várias elipses em que o "eu" é o sujeito da frase.
Os críticos são tratados com o desprezo de quem parece achar-se dono da verdade. Ora são "bobos", ora "impostores", ora são apenas "gatos pingados", ora integrantes de uma "falsa esquerda", ora pertencem a uma "direita carcomida".
O presidente vende a falsa idéia de que ele é o autor de uma verdadeira revolução na posse da terra. "A mudança é aqui e é já, é na terra." Seria ótimo, não fosse o fato de que FHC assinou a entrega de títulos de terra a apenas 217 famílias.
É um primeiro passo, claro, mas nem o otimista mais empedernido diria que por isso se realizou a reforma agrária no país.
O presidente diz ainda que vetou o projeto de salário mínimo de R$ 100,00 porque era "demagógico" e o governo "não tinha fundos para pagá-lo". Agora, afirma que mandou o projeto correto, com os fundos indispensáveis, prevendo para maio um mínimo de R$ 100,00.
Só faltou explicar como, em tão curto prazo e sem que tivesse havido uma só reforma estrutural, o governo que não tinha fundos passará a tê-los já em maio.
É realmente uma pena que o FHC de São João do Jaguaribe nem remotamente se pareça com o FHC da academia, o FHC do Cebrap, o FHC do Senado e mesmo o FHC do Ministério da Fazenda.
São provavelmente os efeitos da solidão do poder que fazem com que o presidente se veja como uma espécie de cavaleiro solitário das boas causas, Quixote dos tempos modernos, o homem que fez o Plano Real, "quase contra tudo e contra todos". Seria bom que o presidente relesse o "Quixote" para lembrar que lutar contra moinhos de vento, por mais que resulte em boa literatura, é apenas patético.

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