São Paulo, terça-feira, 28 de março de 1995
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A retrógrada bancada ruralista

MAILSON DA NÓBREGA

A bancada ruralista é uma vistosa demonstração de subdesenvolvimento político. Seu poder de barganha deriva da ameaça de votar contra o governo. Neste momento, seus membros estão avisando que podem impedir a votação das reformas (conforme noticiou esta Folha no último dia 17), mediante sua retirada do plenário e boicote ao trabalho das comissões especiais. "Se o governo não der solução para os nossos problemas (empréstimos rurais sem correção monetária), vamos criar impasses", disparou o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC).
Os números da bancada impressionam. Ela já é superior a qualquer partido. Possui 120 membros e seus líderes garantem que passarão de 200. Poderá ser mais que o dobro do maior partido, o PMDB (107 deputados), e nesse ritmo chegará à maioria da Câmara. Se for assim, ter-se-á transformado na maior coalizão de veto do Congresso, façanha provavelmente sem paralelo em outra democracia. Será uma inequívoca demonstração da falência definitiva do atual sistema partidário.
Trata-se de uma combinação perversa de corporativismo cartorial, visão antiquada sobre a política agrícola e indisciplina partidária. A origem da bancada está na atrasada legislação eleitoral e partidária, misturada com saudade do crédito subsidiado. É uma das consequências negativas da eleição pelo critério proporcional com voto nominal em lista aberta, praticada no Brasil, mas já extinta nos sistemas políticos modernos.
Por esse mecanismo, vota-se no candidato e não no partido. É o postulante quem distribui santinhos, vende bônus eleitorais e disputa o voto. Eleito, torna-se dono do mandato. Age como quiser, comparece ao Congresso se lhe dá na telha. Não deve obediência ao partido. É um jogo não-cooperativo sem regras de coerção. Sem incentivo à decisão, o sistema torna-se anárquico. As maiorias são ocasionais e os projetos negociados caso a caso sob pressão corporativista e clientelista.
É rara no Brasil a eleição parlamentar com base em idéias ou programas. A maioria chega ao Congresso pelo apoio de associações empresariais e de trabalhadores, regiões agrícolas, comunidades religiosas, corporações etc. A tendência às facções é enorme. São as conhecidas bancadas, que incluindo a ruralista ultrapassam a marca de 20. Nas questões complexas, a ameaça é o instrumento para negociar o voto em troca de nomeações, verbas e outros favores. Relativamente à necessidade de reformas, a eficiência decisória é muito baixa.
Quanto ao subsídio creditício, está enraizada entre os políticos a idéia de que é através dele que se desenvolve a agricultura. Durante cerca de 50 anos, a combinação de primitivismo orçamentário e eficiência do Banco do Brasil deu realmente essa impressão. A produção aumentou e a base agrícola se diversificou sem investimentos satisfatórios em ensino, pesquisa, extensão rural e infra-estrutura. O crédito rural era fonte de estímulo e compensação pela baixa produtividade da agricultura e, em certos momentos, pela sobrevalorização cambial. Os defeitos? Concentração de renda e perpetuação das ineficiências.
Esse esquema se tornou insustentável diante da exaustão do modelo do nacional-desenvolvimentismo e da crise fiscal. Sob fortes pressões corporativistas, entre 1986 e 1989 desmontou-se o seu legado de distorções institucionais. Foram extintos a conta de movimento, no Banco do Brasil, as funções de fomento do Banco Central e o orçamento monetário. Os políticos e os líderes rurais jamais se conformaram e vivem tentando ressuscitar o que já virou história, sob o argumento da necessidade de subsidiar a agricultura.
De fato, a agricultura é subsidiada em todo o mundo, mas raramente por meio do crédito. As políticas agrícolas sérias buscam estabilizar a renda do produtor, aumentar sua produtividade e oferecer-lhe opções de seguro rural (nada a ver com o Proagro). Aqui, pressiona-se o governo pelo fim da correção monetária. Dificilmente se apóia o fortalecimento da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) ou mudanças tributárias para desenvolver as operações a termo e de futuros nas bolsas de mercadorias, essenciais para o "hedge" e como sinais de mercado para orientar a produção. O que dá voto é a defesa do fim da TR e da aberrante idéia da equivalência-produto.
A bancada ruralista é impenetrável pelos ventos modernizantes que emanam de segmentos mais evoluídos da agricultura e da sociedade. Bolorenta, funda sua atuação em surradas práticas políticas e velhos conceitos de intervenção estatal. Criticá-la é estar preparado para receber de seus membros o epíteto de representante dos interesses do sistema financeiro. É hora, contudo, de refletir sobre o papel deletério que essa facção exerce contra a classe política, a agricultura e o país.
A agricultura brasileira merece atenção do governo, especialmente no caso dos pequenos produtores e daqueles que mourejam no semi-árido nordestino e em outras regiões menos desenvolvidas. A TR é sem dúvida um ônus elevado e reflete as inaceitáveis taxas de juros vigentes no país. Mas ela é efeito e extingui-la seria um erro. É preciso, ao contrário, atuar nas causas desse descalabro: o desequilíbrio fiscal, as cunhas tributárias, os excessivos recolhimentos compulsórios e as incertezas provenientes do processo inflacionário.
Se conseguir usar seu poder de barganha para obter a volta do subsídio creditício generalizado, a bancada ruralista contentará suas bases eleitorais mas terá dado contribuição triplamente negativa ao país: maior desequilíbrio fiscal, preservação de equívocos sobre a política agrícola e aprofundamento das distorções do sistema partidário. De lambujem, favorecerá grupos ultrapassados, estatizantes e portanto contrários às reformas.
Os protestos recentes no Rio de Janeiro, em Brasília e em Fortaleza e as ameaças da bancada ruralista são manifestações distintas em seus métodos, mas semelhantes em seus propósitos. Derivam de visões obsoletas sobre o Estado, querem a volta ao passado e representam uma barreira às reformas e à modernização do país.

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