São Paulo, terça-feira, 28 de março de 1995
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Crime de aposentadoria

DALMO DE ABREU DALLARI

O presidente Fernando Henrique Cardoso poderá ser cassado pelo crime de ser aposentado, sendo obrigado a deixar o cargo e sofrendo, ainda, a pena perpétua de proibição de ocupar cargo, emprego ou função pública. Autor da cassação: o próprio presidente da República, com o apoio do Congresso Nacional. Isso que parece absurdo deverá acontecer se for aprovado o projeto de emenda constitucional enviado pelo governo ao Congresso.
Na realidade, o projeto de emenda constitucional preparado pelo governo promove a degradação dos aposentados, que passarão à categoria de cidadãos de segunda categoria, faltando pouco para que a aposentadoria seja definida como crime. Para se ter idéia dos absurdos contidos no projeto, basta que se tome como exemplo o que acontecerá com o aposentado Fernando Henrique Cardoso.
Segundo o projeto (artigo 1º), será acrescentado mais um parágrafo (de nº 7) ao artigo 37 da Constituição, com a seguinte redação: "É vedada a percepção simultânea de rendimentos de aposentadoria com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos mencionados no inciso XVI deste artigo". Essa ressalva se refere a três hipóteses: dois cargos de professor, um cargo de professor com outro técnico ou científico e, por último, dois cargos privativos de médico.
Assim, portanto, apesar da redação confusa parece não haver dúvida de que o máximo que se permitirá ao aposentado será a acumulação dos proventos da aposentadoria com a remuneração de um cargo de professor, de cargo técnico ou científico ou de um cargo de médico.
O artigo 16 do projeto faz uma ressalva, nos seguintes termos: "O disposto no artigo 37, parágrafo 7º, em relação aos cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração, somente entrará em vigor dois anos após a promulgação desta emenda". Por força desse artigo, o ministro da Previdência, que é aposentado, poderá permanecer no cargo por mais dois anos, pois os cargos de ministro são exercidos em comissão e declarados em lei de livre nomeação e exoneração. Entretanto, o presidente da República não será beneficiado por essa ressalva e será obrigado a deixar o cargo no dia em que a emenda for promulgada, como é bem fácil de demonstrar.
Antes de tudo, não há dúvida de que o presidente é titular de um cargo. A própria Constituição faz referência expressa ao cargo de presidente, nos artigos 80 e 81. Esse cargo é exercido em caráter efetivo, não em comissão, não havendo quem possa nomear ou demitir livremente o presidente. Este, portanto, não ocupa cargo em comissão e por essa razão não gozará do privilégio de permanecer mais dois anos no cargo.
Poderá alguém observar que o projeto de emenda proíbe a acumulação dos rendimentos da aposentadoria com a remuneração de cargo. Assim, se o presidente abrisse mão de sua remuneração não estaria acumulando. Ocorre, entretanto, que a remuneração é inerente ao cargo. Vem a propósito lembrar o ensinamento de Hely Lopes Meirelles: "A percepção de vencimentos pelo exercício do cargo é a regra da administração brasileira, que desconhece cargo sem retribuição pecuniária". A obrigatoriedade da remuneração é uma regra democrática necessária, pois se não fosse assim só os ricos teriam condições para ocupar o cargo.
Aí está, com toda a clareza, o que acontecerá com o servidor autárquico aposentado Fernando Henrique Cardoso se for aprovada a emenda constitucional por ele proposta. Isso demonstra, também, que todos os aposentados sofrerão a perda do direito subjetivo fundamental de participar da administração pública. Nenhum aposentado poderá mais ser candidato a presidente, governador ou prefeito, nem poderá ocupar cargo ou exercer função como auxiliar do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, inclusive das autarquias.
Essa cassação de direitos é duplamente inconstitucional, pois fere a cláusula pétrea da Constituição que proíbe emendas abolindo direitos individuais, além de contrariar a norma básica, democrática e justa, da igualdade de todos perante a lei.
Há muita coisa mais a dizer contra a desastrada, confusa e injusta proposta de emenda constitucional enviada ao Congresso. Mas por essa amostra já se pode verificar que a questão das aposentadorias, da mais alta relevância social, não foi tratada com a necessária seriedade, chegando-se ao surrealismo jurídico.
Quem for a favor do presidente e quiser que ele permaneça no cargo deverá ser contra sua proposta de emenda. Quem, ao contrário, não o quiser mais na Presidência deverá trabalhar para que a emenda seja aprovada. Parece absurdo, mas é assim que as coisas estão colocadas.

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