São Paulo, quinta-feira, 30 de março de 1995
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Essa paixão, o riso

MOACYR SCLIAR
SENTADO À FRENTE DO PSICANALISTA, O RAPAZ SORRIA.

— Eu sei o que o senhor pensa de mim — disse. — Eu sei que o senhor me acha perturbado. Um sujeito que entra à noite em casas estranhas, não para roubar, mas para fazer cócegas nos pés das crianças, só pode ser maluco. O "maníaco das cócegas", como diz o jornal. Mais: para o senhor este meu hábito tem uma conotação nitidamente libidinosa. Fazer cócegas é uma equivalência do ato sexual, não é mesmo? E o riso também. Não é isto o que está pensando?
O psicanalista continuava calado. O sorriso desapareceu do rosto do rapaz, que suspirou.
— Ah, se fosse tão simples, doutor. Se fosse tão simples... Mas a minha história é bem diferente, doutor. Eu tinha um sonho, sabe? Eu tinha um sonho. Eu queria ser humorista. Como estes que fazem shows nos Estados Unidos e ganham uma fortuna... Isto era o que eu queria ser. Desde criança. Desde criança eu contava anedotas, fazia caretas, dizia coisas engraçadas. Em casa, na escola, em todo o lugar.
Suspirou de novo.
— O problema, doutor, é que ninguém ria. Ninguém achava graça do que eu fazia. Você não dá para isso, era o que todos me diziam. Meu pai, por exemplo, só riu de mim uma vez, uma única vez: foi quando eu lhe disse, no almoço, que queria me tornar humorista profissional. Aí ele teve um acesso de riso. Riu tanto que chegou a se engasgar. Minha mãe ficou irritadíssima comigo. "Viu o que você fez com seu pai", ela gritava. "Você quase matou o homem! Não me venha mais com essas histórias idiotas!"
Ficou em silêncio um instante, e continuou:
— Percebi que não teria o apoio de ninguém. Não podia contar com meus pais, nem com meus amigos. E então a idéia me ocorreu: eu faria com que as pessoas rissem de mim de qualquer maneira —nem que eu tivesse de fazer cócegas nelas. Mas quais pessoas? Não o meu pai, nem minha mãe, nem qualquer outro adulto. Tinha de ser com crianças. E com crianças que estivessem dormindo. E foi assim que eu comecei: entrava nas casas, descobria o quarto das crianças, ia até lá. Contava baixinho uma anedota e fazia-lhes cócegas. Elas riam, doutor. No sono elas riam.
As lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto. Ele tirou o lenço, enxugou-as. Depois prosseguiu:
— Aquele riso, doutor, era música para os meus ouvidos. Porque o riso sempre foi a minha paixão, a minha única paixão. Pouco me importava que as crianças sequer me vissem, que me enxergassem apenas como uma sombra. O importante é que elas riam.
— O senhor não acha engraçada a minha história, doutor? Não é engraçado? E se é engraçada —por que o senhor não ri?
Calou-se. Sabia que sua indagação não tinha resposta. Jamais alguém riria dele. Jamais alguém riria com ele. E jamais alguém compreenderia que para ele o riso era uma paixão, era a grande paixão de sua vida.

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