São Paulo, quinta-feira, 30 de março de 1995
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Os recém-chegados

MIGUEL JORGE

A violência e a criminalidade parecem deixar de ser fenômeno estritamente urbano ou metropolitano para se tornar problema nacional. Na tentativa de construir uma sociedade mais justa, o atual governo montou uma estratégia contra a pobreza, base dessa crise de crimes e violência, na qual se insere o programa "Comunidade Solidária", entre outros. Iniciativas como essas representam um esforço no caminho certo.
Mas deve-se atentar para algo preocupante, que foge do raio dessas ações: a execução de um assaltante preso e desarmado por um cabo da PM, no meio da rua, e a maciça aprovação popular, em enquete de emissoras de rádio e TV. Esse indício claro de que parte da nação começa a aceitar, como solução, os "julgamentos" e as "sentenças" de policiais travestidos de juízes e carrascos deveria ter merecido profunda reflexão dos ocupantes do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.
Trata-se também de uma mostra de desordem a que o país pode chegar-se pela sensação de impunidade dos criminosos e da falência do Poder Público. Os cidadãos concluem que caberá a eles mesmos, ou a eventuais prepostos, a eliminação dos bandidos. E se armam cada vez mais —os anúncios de venda de revólveres e de defesa pessoal proliferam. Calcula-se que mais de um milhão de homens armados, dos quais 600 mil trabalhando legalmente como "seguranças", andem pelas ruas, praticamente sem controle do Estado.
Pode ser até que, em pouco tempo, o episódio do policial que matou o bandido caia no esquecimento. Mas não se pode esquecer que aquele policial é apenas mais um recém-chegado à massa dos adeptos da prática do olho por olho. Se grande parte da população já aprova a pena de morte, segundo várias pesquisas, agora ela se torna defensora ardorosa da execução sumária.
Quando se fala na modernização do país, nunca se toca na necessidade de, antes de tudo, mudar o caótico quadro de violência e criminalidade (embora, por certo, ele só se reduzirá radicalmente com o fim da pobreza que atinge 40 milhões de brasileiros). A sociedade reclama medidas muito mais eficazes na área social, para que os cidadãos não se sintam abandonados numa luta em que sua única defesa esteja na sua própria capacidade de usar um revólver.
Nos lugares onde a polícia é substituída por matadores, o trabalhador não sente sua vida protegida e a lei passa a ser letra morta, surge uma atmosfera própria para justiceiros, criminosos que vicejam em Estados incapazes de vencer a miséria e o desemprego. A delinquência e a criminalidade aumentam exponencialmente em um mesmo cenário: despreparo policial, falta de moradia, de escolas e de serviços de saúde, Justiça lenta ou ineficiente, negligência e falta de vontade política dos governantes.
Dados do Banco Mundial indicam que 40,9% dos brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza, com renda per capita mensal de US$ 60 (!). E 30 milhões de habitantes da oitava economia mundial não sabem ler e escrever, segundo diagnóstico elaborado para a reunião da ONU que discutiu a pobreza, em Copenhague, na Dinamarca.
A conclusão é simples: se não houver empregos e se, para esses brasileiros, continuar sendo negado o acesso às necessidades básicas para uma vida digna, a sociedade e o Estado brasileiro estarão fabricando criminosos todos os dias, todas as horas.

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