São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 1995
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Miséria - tua cara é de mulher

MARTA SUPLICY

As últimas conferências internacionais sobre população e desenvolvimento, como as do Cairo em 94 e Copenhague em 95, têm reiterado que os programas de combate à fome e à miséria deverão focalizar diretamente o ser humano, em detrimento de megaprojetos que dificilmente terminam por beneficiar a população mais pobre. As metas são a educação, a saúde, o pleno emprego e o fim da pobreza e da exclusão social. O ser humano deve ser o objeto direto das ações governamentais; a mulher, o alvo específico.
Damos um grande passo quando as conferências mundiais decidem somar forças para eliminar as incontáveis barreiras colocadas entre a decisão de realizar investimentos sociais e a sua ponta final, o ser humano, e ter como foco preferencial o resgate da condição da mulher. Não é à toa: dos 960 milhões de analfabetos no mundo, dois terços são mulheres; das 130 milhões de crianças que não terminaram o curso primário, dois terços são meninas.
A boa disposição dos dirigentes políticos com relação a esses problemas compõe um novo e saudável consenso mundial. Uma mostra de boa vontade foi o anúncio feito pela primeira-dama Hillary Clinton, no Dia Internacional da Mulher, da doação, por parte do governo dos EUA, de US$ 100 milhões em dez anos para projetos em prol de mulheres e meninas pobres da Ásia, América Latina e África.
O valor, no entanto, é ridículo (ou simbólico, como queiram). Parcelado em dez anos, temos US$ 10 milhões por ano distribuídos por três enormes continentes onde se abriga a maioria dos destituídos do mundo. Resultado final, pouco mais de US$ 3 milhões por ano para cada continente.
O exame de alguns valores dão uma boa idéia da disparidade de recursos socialmente aplicados nos dois pólos da riqueza mundial. A Prefeitura de São José dos Campos (SP) esforça-se, neste momento, para construir um hospital municipal. Seu custo está orçado em US$ 3 milhões —o mesmo volume de dinheiro destinado por Hillary Clinton para toda a América Latina!
Um número colhido ao acaso: o passivo do Banespa é estimado em quase US$ 20 bilhões. O Primeiro Mundo aplica US$ 6 bilhões/ano na prevenção e tratamento da Aids. No mundo pobre, os recursos contra a Aids somam US$ 500 milhões por ano. A discrepância torna-se realmente assustadora quando consideramos o fato de que o Terceiro Mundo tem quatro vezes mais portadores do vírus HIV que os países ricos.
Em todo o mundo a democracia impõe-se como modelo político. A Europa Ocidental negocia a redução da soberania dos Estados sem a perda de seus fundamentos democráticos. Com os grandes avanços da tecnologia nas áreas de telecomunicações e processamento de dados as economias se globalizam rapidamente. Perdem-se e ganham-se fortunas em minutos; países tidos como modelo de reestruturação econômica em semanas transformam-se em exemplo de administração ruinosa.
E no meio de toda essa modernidade, mantém-se os pólos de pobreza com seus correspondentes internos. Os projetos de investimento dos ricos no mundo dos pobres são migalhas e, até agora, sempre com finalidades que correspondem aos interesses específicos dos ricos. Isso ficou claro em Copenhague, onde a problemática social ganhou status de questão de segurança mundial.
Se os investimentos na área social têm sido irrisórios, no que diz respeito às mulheres a situação é dramática. Seria preciso começar, por exemplo, com projetos de infra-estrutura que permitam à mulher ausentar-se de casa. Hoje, por não ter com quem deixar os filhos, ela fica sem condições de qualificar-se ou de competir para exercer um trabalho com melhor remuneração, ainda que tenha escolaridade.
O machismo e a resistência patriarcal impedem que o trabalho feminino seja visto como um direito e tenha o reconhecimento social devido. Temos ainda pais dizendo que é bom a filha estudar "porque se o marido larga, né?" Ou ainda como contou uma estudante da Unicamp que procurou um estágio em uma multinacional japonesa e ouviu como resposta: "Não contratamos mulheres, mas não se trata de discriminação; é que a função exige viagens com outro técnico e isso nos obrigaria a pagar dois quartos nos hotéis".
Nas escolas a educação ainda é sexista. Em diversas partes do país ainda prevalece o incentivo à capacidade de liderança e iniciativa nos meninos, enquanto que nas meninas esta mesma qualidade, além de não ser valorizada, às vezes é desqualificada. Cursos de orientação sexual que trabalhem a questão de gênero podem fazer diferença.
Há o gueto dos "trabalhos femininos", sempre os de menor remuneração, e a terceirização do trabalho, esta praga que rouba a carteira assinada das mulheres e as obriga a dupla ou tripla jornada dentro de casa com o consolo de que "pelo menos ficam perto dos filhos". É o caso de incontáveis costureiras que trabalham em casa para as confecções: costuram, olham a panela, controlam o guri, cuidam da roupa... —é este o paraíso da terceirização!
Vamos ver se os novos investimentos internacionais virão realmente atrelados a projetos que possam produzir um diferencial na condição da mulher. Entrementes, aguardamos ações da Comunidade Solidária e os seus programas específicos para mudar a cara da pobreza.

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