São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 1995
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Crianças -o futuro é hoje

ALDA MARCO ANTONIO

Crianças —o futuro é hoje
O governo de São Paulo está jogando no lixo uma extraordinária experiência no atendimento a crianças
O governo de São Paulo está fechando a Secretaria do Menor. Milhares de crianças estão deixando de receber atendimento vital para suas sofridas vidas. Muitas não têm família ou alguém com quem contar. As que vivem nas ruas terão sua situação, já precária, agravada.
O Brasil é visto hoje como um dos países mais violentos do mundo. Aqui a vida do ser humano vale muito pouco. Mata-se por quase tudo e por quase nada: para roubar, por vingança, por discussão no trânsito, por ciúmes e por abuso sexual. Mas nada é mais forte, mais covarde e mais revoltante do que a violência que se abate sobre as crianças.
Aqui criança morre de facada, paulada, tiro, atropelada, esganada, violentada por espancamento, fome, negligência. Aqui crianças crescem analfabetas por falta de escola ou por não poder frequentá-la. No mundo do trabalho são exploradas ainda mais que os adultos. Só que seu físico ainda não formado carrega sequelas ou doenças pelo resto da vida. Quando sobra vida, porque muitas morrem em acidentes de trabalho antes de completarem a maioridade.
Está aumentando muito o assassinato de jovens. A maioria raramente é esclarecida, e quando o é, a impunidade é a tônica. Raramente se consegue condenar algum assassino de criança.
Adultos, quase sempre parentes, coordenam crianças nos semáforos obrigando-as a esmolarem, expondo-as a uma variada gama de violências: atropelamento, sequestro, estupro e ainda a terem sua personalidade deformada pela função degradante de pedirem esmola como meio de vida. Os adultos que exploram crianças estão cometendo crime, porém nada lhes acontece.
A situação das crianças muito pobres, daquelas que são vítimas de violência dentro ou fora de casa, das que se perdem de suas famílias, das abandonadas e das que vão viver nas ruas, só não é pior porque a partir de 1987 deu-se início à implantação pelo governo do Estado de políticas públicas para a chamada área da proteção especial.
Foram criados 14 diferentes programas em tudo inovadores, a começar pela radical mudança em relação às tradicionais políticas brasileiras calcadas no assistencialismo e na repressão. A Secretaria do Menor trocou a esmola e a pancada pelo trinômio: garantia de direitos, educação e liberdade.
Para conseguir inovar, a Secretaria do Menor teve de criar um novo profissional. O governo investiu no treinamento de mulheres e homens que foram seus braços avançados na aplicação da nova política, atendendo diretamente crianças e jovens com problemas e dramas muito especiais. O resultado foi tão extraordinário que o Unicef enviou a São Paulo técnicos de 19 países para serem aqui treinados, transformando oito dos 14 programas em modelo.
O treinamento internacional foi ministrado por profissionais que agora estão sendo demitidos sem qualquer consideração à sua competência e habilitação. Foram ainda esses mesmos profissionais que treinaram e capacitaram a pedido do governo federal, em 1991, técnicos dos Estados brasileiros...
Quando o novo governo de São Paulo fecha casas de atendimento, despede funcionários treinados e experientes, age segundo uma prática política antiga de governantes incompetentes que precisam destruir tudo que encontram de seus antecessores para tentar criar algo novo e deixar uma marca própria.
Talvez em outras áreas, atitudes como essa até possam ser aceitas, mas não no caso da Secretaria do Menor, criada para atender crianças e jovens em situações muito delicadas, que não podem esperar um dia, às vezes nem uma hora. O futuro da criança é hoje. A luta é pelo presente!
Ao fechar os programas da Secretaria do Menor, o governo está jogando no lixo uma extraordinária experiência mundial no atendimento a crianças e na formação e capacitação de recursos humanos para se atuar em situações que envolvem o que o ser humano tem de mais precioso: a criança, e, ainda, em situação de risco.
Esse patrimônio que é nosso, é paulista, e que estava servindo também ao Brasil e a outros países, não pode ser avaliado em termos materiais. É muito importante para ser descartado, como se pudesse ser substituído facilmente.
O patrimônio que está sendo jogado fora em prédios, instalações, material didático e recursos humanos é incalculável. Mas tem uma perda que é maior e que não poderá ser recuperada: o atendimento às crianças. Para ficar só no alimento, uma criança que deixa de comer um dia terá menos neurônios pelo resto de sua vida.
Tentar agora estabelecer a velha polêmica e dizer que as crianças são do município ou do movimento social é querer confundir para fugir de suas próprias responsabilidades.
As crianças não são de ninguém, elas são delas mesmas, mas a obrigação de ajudá-las a se tornarem adultos plenos e cidadãos produtivos é de todos: da família, da sociedade, do Estado e de cada adulto individualmente.
Quando a família falha, a sociedade deve atuar, mas quando falham ambas, o Estado não tem o direito de falhar. Por isso é necessário que existam as políticas públicas de retaguarda, executadas por profissionais competentes na tarefa que mais interessa ao país: formar seus futuros cidadãos.
E não me venham com a conversa já gasta de que cuidar de criança é caro: caro é não cuidar de crianças, caro é deixá-las crescer analfabetas e abandoná-las à sua própria sorte. Mais caro ainda é ter que sustentar muitas, depois de adultas, nos presídios.
Parece que está faltando a coragem de fazer. Desfazer é mais fácil, só que pode custar muito caro, e a história registra, e costuma não esquecer.

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