São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Para Spike Lee, Brasil escravo sobrevive

MARILENE FELINTO
ENVIADA ESPECIAL A NOVA YORK

Numa rua do lendário bairro do Brooklyn, em Nova York, Spike Lee, 37, o mais importante cineasta negro americano, autor de "Faça a Coisa Certa" (1989) e "Malcolm X" recebeu a Folha, no escritório de sua produtora "Forty Acres and a Mule - Film Works" -"Quarenta acres e uma Mula", referência a uma promessa de lei abolicionista americana que beneficiaria cada ex-escravo negro com quarenta acres de terra e uma mula.
Grandes portões de ferro, interfone e uma câmera secreta protegem o escritório das ruas do bairro onde ele nasceu e onde foi rodado seu mais recente filme, "Crooklyn", lançado em vídeo no Brasil há dois meses.
Uma longa escadaria de madeira, cercada por pôsteres de filmes nas paredes (entre eles o do brasileiro "Pixote", de Hector Babenco), conduz ao escritório simples mas espaçoso, onde três funcionários negros atarefados davam conta do serviço.
Numa sala reservada, entre latas de filmes e diante de uma grande fotografia emoldurada de Michael Jordan de braços abertos, segurando uma bola de basquete, Lee falou sobre seus novos projetos de filmes, sobre racismo, as diferenças entre o racismo no Brasil e nos Estados Unidos, sobre a música, o cinema e o povo brasileiro.
Suas posições contraditórias e radicais podem facilmente ser vistas como racistas -ou não, dependendo do ângulo em que se olha.
Seus últimos filmes enfrentaram bombardeios da crítica e fracasso de bilheteria. Mesmo assim ele vai em frente, com leve arrogância, cheio de planos para o futuro.
Está terminando o filme "Clockers", um thriller policial com produção executiva de Martin Scorcese, música arranjada por Dori Caymmi e estrelando Harvey Keitel e John Turturo no elenco.

Folha - O que você achou da premiação do Oscar este ano?
Spike Lee - Eu já calculava que "Forrest Gump" ganharia os prêmios principais. A grande omissão foi "Hoop Dreams" não ter sido indicado como melhor documentário. E houve o caso de Samuel Jackson ficar relegado à indicação de melhor ator coadjuvante, quando deveria estar na categoria de melhor ator, como John Travolta.
Folha - "Hoop Dreams" é um documentário sobre a trajetória de crianças negras. Samuel Jackson, que atuou em "Pulp Fiction", é um ator negro. Por que os negros raramente ganham Oscars?
Spike Lee - Em primeiro lugar, porque não ganhamos os papéis nem as oportunidades para isso. Quanto menos papéis, menos oportunidades. Não temos as mesmas chances de sermos indicados. Acho também que não somos vistos como artistas sérios. Principalmente nas áreas técnicas, é muito raro haver gente negra, como em som, cinematografia.
Folha - A revolta da população negra nas ruas de Los Angeles em 1992, por conta do caso Rodney King, parecia uma cena de "Faça a Coisa Certa". Aquilo surpreendeu você?
Spike Lee - Não vou mentir. Eu não tinha nenhuma bola de cristal para poder prever o que ia acontecer. Além disso, a revolta de Los Angeles não foi a primeira. Houve muitas revoltas como aquela, especialmente nos anos 60.
Folha - Você esteve no Brasil há quatro anos, para o festival de cinema do Rio. O que achou da situação dos negros lá?
Spike Lee - Para mim ficou evidente que no Brasil, embora digam que não há preconceito, se você é de cor ou negro, está relegado ao último degrau da sociedade. Foi muito impressionante para mim, como americano, olhar para a televisão brasileira, para os anúncios de propaganda nos jornais e revistas e ver que só aparecia branco. Mas se você anda pelo Brasil, você vê gente negra. Ao mesmo tempo, o Brasil assume essa fachada de "um sangue um povo", mas são os brancos brasileiros que têm o poder e o dinheiro. Então isso para mim parece resquício da escravidão.
Folha - Mas o Brasil é um país muito mestiçado. Nos EUA quase não há mestiçagem.
Spike Lee - Nos Estados Unidos sempre houve essa história de que basta a pessoa ter uma gota de sangue negro para ser considerada negra. Embora haja algumas exceções, em geral é assim que a coisa sempre foi. Mas você não diria que os negros são a população dominante no Brasil?
Folha - Não. Eu diria que os mestiços é que são.
Spike Lee - Mas o que é ser mestiço? Você é mestiça?
Folha - Sou. No Brasil, eu sou. Aqui eu sou negra.
Spike Lee - Espera aí, espera aí. Sem essa. Você é negra. Isso de a pessoa crescer dizendo que é metade uma coisa e metade outra é esquizofrênico. Aqui, na maioria das famílias que tenho observado, mesmo que um dos pais seja branco, a criança é educada ou como branca ou como negra.
Folha - Os negros são minoria nos Estados Unidos, talvez por isso precisem mais de uma auto-afirmação racial.
Spike Lee - Por isso mesmo a situação no Brasil é pior. Nós ainda temos a desculpa de sermos minoria. Mas vocês, em maioria, têm muito menos representatividade. Não há modelos negras ou mestiças no Brasil, vocês não aparecem vendendo produtos na mídia.
Folha - Os brancos anglo-saxões americanos são mais racistas que os brasileiros de origem luso-mediterrânea e escura?
Spike Lee - Pode ser. Mas no Brasil eles agem como se não houvesse esse problema, e isso não é verdade. E tem muito brasileiro loiro de olho azul. Então qual a diferença dos loiros de olhos azuis anglo-saxões? Eu não vejo nenhuma diferença. Mas eu não posso falar muito mais sobre o Brasil, porque são dois países muito diferentes. O Brasil é um país muito bonito, o povo é bonito, tem uma música muito boa.
Folha - Eu observei que a grande maioria das mulheres negras americanas alisa o cabelo. Spike Lee - Eu acho que elas alisam muito o cabelo. Mas o pior é quando fazem aplique.
Folha - No Brasil, as negras já não alisam mais o cabelo como faziam nos anos 60 ou 70.
Spike Lee - Você não acha que isso também tem a ver com a condição econômica?
Folha - Não. Há muitas maneiras baratas de se fazer isso lá. As americanas não estariam negando a raça?
Spike Lee - Elas querem ter cabelo liso. Acham que fica mais bonito e mais fácil de pentear. Não querem ter cabelo natural, garapinha. Algumas podem estar negando a raça. Mas para muitas mulheres é questão de conveniência.
Folha - A situação dos negros americanos está melhor agora do que quando você era criança?
Spike Lee - Provavelmente está pior, por causa do crack, da violência de negros contra negros, por ser mais fácil comprar armas hoje em dia, e porque nos últimos anos tem havido ataques aos programas sociais. Realmente piorou desde que os republicanos assumiram o controle do Congresso, liderados por Newtt Gingrich.
Folha - O que você acha do caso O.J. Simpson?
Spike Lee - Eu não tenho acompanhado muito o julgamento. Tem gente que assiste pela TV a cabo todo dia. Infelizmente duas pessoas estão mortas e parece que essas duas crianças vão ser educadas sem os pais delas.
Folha - Mas, na sua opinião, há questões de raça influindo no julgamento?
Spike Lee - Raça sempre influi em tudo. As pessoas podem até tentar esconder isso, mas influi.
Folha - A transformação física de Michael Jackson repercute de forma negativa para os negros americanos?
Spike Lee Eu acho que é um episódio triste esse do Michael ter escolhido alterar por meios químicos e cirúrgicos suas características dadas por Deus, mas no entanto isso não diminui o grande artista que ele é.
Folha - No centro de seus filmes estão sempre personagens negros. Você já pensou em fazer um filme só com brancos?
Spike Lee - Há brancos em "Faça a Coisa Certa", em "Mais e Melhores Blues", em "Febre da Selva" e em "Malcolm X" também. Eu acho que não preciso ficar pedindo desculpas por focalizar em meus filmes questões que dizem respeito a afro-americanos.
Folha - Qual a porcentagem de brancos e negros que assistem a seus filmes?
Spike Lee - Deve ser algo em torno de 65% de negros e 35% de brancos.
Folha - Seu último filme, "Crooklyn", parece bastante autobiográfico.
Spike Lee - Eu não diria que é autobiográfico. Acho que há elementos de nossa infância, mas muito daquilo foi inventado.
Folha - Você está trabalhando num novo filme agora.
Spike Lee - É. Estamos terminando um filme chamado "Clockers", que é um romance de Richard Price, estrelando Harvey Keitel, Delroy Lindow e John Turturo. A produção executiva é de Martin Scorcese, tem uma nova música arranjada por Dori Caymmi e vai estrear no outono.
Folha - Sobre o que é o filme? Tem a ver com racismo?
Spike Lee - É um filme policial. Eu não diria que é um filme sobre racismo, mas tem alguns personagens lá que podem ser considerados racistas.
Folha - O que você conhece do cinema latino-americano?
Spike Lee - Conheço pouco. "Pixote", de Hector Babenco, é um dos meus filmes favoritos. Conheço o Cinema Novo, Glauber Rocha. Gosto muito, mas às vezes é um pouco teatral demais.
Folha - Quais são seus planos para depois de "Clockers"?
Spike Lee - Estamos nos preparando para começar em abril um filme chamado "Girl Six", sobre uma jovem que trabalha num escritório de sexo por telefone. Estou também escrevendo o roteiro de um filme sobre a vida de Jackie Robinson, o primeiro jogador de beisebol afro-americano.
Folha - Você diria que já expressou em seus filmes tudo o que havia para expressar sobre questões raciais?
Spike Lee - Não. Como eu poderia dizer isso? Eu nunca senti isso nem nunca disse isso. Tem muito mais a ser dito, descoberto e questionado.

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