São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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O Público e o Privado

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

As democracias de massa violam a separação público-privado
(continuação)

consumo passou a constituir uma forma de exercitar um poder social tão restrito quanto cada um logra ampliar sua esfera de visibilidade.
Se a vida social tem como prioridade escalar, se os bens se convertem em trampolim para o alto, nada mais natural do que os recursos públicos fiquem subordinados a essa ascese. Cada um ou cada grupo procura retalhar no espaço público o degrau que o leva para cima, ao menos que conserve o nível social já ocupado. Ruas passam a ser fechadas e controladas por alguns moradores preocupados com a segurança de si mesmos ou de seus bens, repartições são transformadas em escritórios ou consultórios pessoais, verbas são aplicadas em proveito próprio e assim por diante; até mesmo a vida política tende a ser praticada e vista como o exercício duma personalidade excepcional que confunde interesses privados e públicos.
Note-se que o uso pode vir a ser privado, embora a propriedade possa permanecer estatal. Esta ênfase no uso é muito sintomática da crise moderna e contraria frontalmente o conceito de liberdade tal como era pensado pelos clássicos do século passado. Hegel, por exemplo, na linhagem de Kant, concebe a liberdade como processo da vontade objetivar-se. E o indivíduo chega a ela como pessoa na medida em que se torna capaz de manifestar e imprimir em cada coisa sua própria vontade, transformando-a assim em sua propriedade. Mas se esta é base do direito, está longe de constituir o núcleo racional do Estado. É o que nos ensina sua Filosofia do Direito. Desse ponto de vista, o uso privado de um recurso público é a negação do direito e da liberdade objetiva. É como se a propriedade, antes expressão da liberdade individual, a ser superada pela vontade geral como razão de Estado, se convertesse por si mesma na expressão da liberdade social, o uso privado de bens públicos evidenciando o poder social do grupo que deles se apropriam. A liberdade passa então a ser entendida como a prática do arbítrio, fazer o que quiser, e por direito se entende a expansão da vontade singular até encontrar os limites em que o outro é invadido. Dessa ótica, o Estado aparece sobretudo como obstáculo. E quando se recorre a ele como árbitro ou provedor, é para solicitar quase sempre um privilégio, ao menos, que reconheça uma particularidade, uma minoria, muitas vezes vindo a ser legítima pelo simples fato de existir.
No entanto, essa expansão do privado que se faz social excludente choca com o movimento inverso dos interesses públicos. Como estes se configuram? Conforme os interesses privados se socializam abre-se o espaço duma representação. Para poder privatizar algumas ruas e cercar um pedaço de um bairro é preciso formar uma sociedade de amigos, cuja direção representa os moradores como um todo. E os interesses corporativos se organizam em instituições dirigidas por representantes informais ou legais. Ocorre pois uma duplicação de certos agentes que possuem interesse particular em representar interesses coletivos, seja porque desse modo aumentam sua esfera de apropriação privada, seja porque aumentam sua influência e visibilidade e assim por diante.(...)
Importa é salientar que a oposição público-privado necessita dum meio de apresentação em que os representantes dos interesses públicos, de tudo aquilo que um grupo necessita como um todo, inclusive manter sua própria identidade, estão eles próprios divididos numa parte pública e numa parte privada. Ora, nas atuais democracias de massa essa separação é sistematicamente violada.(...)
Ambos os processos, aquele de tornar público e aquele de tornar privado, se na verdade se confrontam na medida em que o primeiro representa um interesse geral e o segundo busca recortar um privilégio no elemento dessa generalidade, igualmente se imbricam desde que o bem em disputa vem a ser a informação. Cada indivíduo carece saber onde pode comprar melhor e mais barato a fim de ganhar vantagens marginais no mercado, onde pode alfabetizar seus filhos ou a si mesmo, onde encontra o médico especialista ou o instituto de saúde capaz de oferecer-lhe o melhor e o mais barato tratamento, onde e como obtém instruções para escolher melhor seus representantes, em qualquer nível em que a representação se coloca na sociedade contemporânea. Em contrapartida, o representante é antes de tudo um manipulador de informação, e seu poder advém de sua capacidade de informar e desinformar, ao mesmo tempo de sua força de colocar o outro em situação de ser informado ou manipulado. Se a formação do espaço público no século 18 foi contemporânea à circunscrição do segredo de Estado, hoje em dia a informação, como bem assinala Habermas num de seus primeiros livros, é um instrumento de poder ambíguo que, ao mesmo tempo, desvela e oculta. Tudo o que vem a público agora possui seu lado secreto, aquilo que pode ser dito a fim de aumentar o poder do representante e aquilo que não pode ser dito, porquanto reforça o poder do adversário. É no interior desse conflito que medra a democracia moderna, sendo que ela se reforça como instituição pública conforme se torna mais transparente e, igualmente, consegue controlar por meio de representações adequadas aquilo que não pode ser dito de imediato. Não se segue daí que se deve abolir a dualidade do representante, como se o ideal consistisse em transformá-lo em mero executor de um interesse coletivo, porquanto este só se torna coletivo graças a essa dualidade, quando o representante, com o intuito de aumentar seu poder pessoal, amplia o jogo de tornar públicas tanto as informações que possui, quanto as atividades pelas quais as tornam gerais.(...)
É conhecida a literatura sobre a crise do fordismo e novas formas de trabalho que as indústrias modernas introduzem para diminuir o automatismo e dar maior responsabilidade ao trabalhador individual, tratando de informá-lo melhor sobre o processo de produção como um todo. Essa profunda transformação não ocorre apenas nas fábricas, mas ainda na própria administração pública, onde o funcionário adquire progressivamente maior grau de liberdade para tomar decisões como se ele mesmo fosse o proprietário dos recursos que está gerindo. Escrevem-se livros que mostram como se está reinventando o governo e como o espírito empreendedor invade o setor público. Desse modo, tanto neste último como no setor privado inventa-se uma maneira de combater o automatismo da burocracia quebrando seus rituais, obrigando cada ato do funcionário a adquirir sentido próprio, abrindo-lhe um espaço de criatividade, a fim de que o indivíduo deixe de ser mero executor de tarefas regulamentadas para converter-se num artesão de serviços, cujo produto final é que será posteriormente avaliado.
Não se segue daí que diminua a exploração ou que cesse a opressão; pelo contrário, podem aumentar na medida em que se tornam mais sutis. Mas, por ora, neste texto exploratório, cabe ressaltar que o trabalho, mais do que dispêndio extenuante de força física surge antes de tudo como meio de se chegar ao consumo, cujo exercício se dá simultaneamente como ato de subserviência e de liberdade.(...) Cabe pois indagar se uma liberdade imaginária já não se infiltra na dominação efetiva, sendo que nesse caso a imaginação pode aumentar certos graus de liberdade individual e coletiva. O fordismo, ao contrário, na fábrica ou na repartição pública, não era propriamente a supressão da liberdade, mas a negação de seu espaço, pois reduzia o indivíduo a uma besta de carga, embora altamente treinada. A liberdade morava fora da fábrica, no sindicato e na política. Mas aquele que hoje presta serviços não precisa ser criativo a nível de sua faina cotidiana? Desse modo, quando se nega a liberdade de expressão de si e de todos é porque já se opera num domínio onde uma nova forma de liberdade começa a ter sentido: a liberdade de controlar os impulsos destrutivos individuais e sociais.
Na medida em que o trabalho se apresenta sobretudo sob a forma de prestação de serviços cada vez mais informada cria-se uma ambiguidade muito peculiar entre o automatismo do ato e a responsabilidade pelo produto. Quando se presta serviço a uma grande engrenagem, como se trabalhar se resumisse numa forma de regular um painel eletrônico, de um lado, o ato é muito mais inteligente do que o mero apertar um botão, embora a responsabilidade por esse espaço aberto se transfira para a própria engrenagem, sob a forma de controle quer eletrônico quer pessoal. Para o trabalhador vale, em primeiro lugar, a lei do mínimo esforço, já que sua atividade não encontra no produto uma superfície lisa onde possa se espelhar, como acontece com o trabalho artesão. Cumpre sua tarefa na exata medida em que alinhava uma fissura entre uma parte e outra do processo produtivo. No entanto, ademais, como aumenta sobremaneira sua capacidade de interromper esses processo -uma greve dos operadores dos radares de um aeroporto paralisa todo o sistema- é do interesse desse sistema que tenha uma visão geral do próprio processo, que se orgulhe dele por causa de sua função coletiva. Em suma, quanto mais sua liberdade fica confinada aos limites estreitos duma engrenagem auto-regulada, tanto mais aumenta sua capacidade de generalizar sua vontade por meio da interrupção do trabalho ou da sabotagem. Desenvolve uma liberdade negativa, recusando o público, que precisa então ser contrabalançada pela inteligência do todo e pela tomada de consciência da responsabilidade de sua função social. Obviamente a primeira tendência de tais trabalhadores é associarem-se numa categoria em vista de seus interesses corporativos, confundindo assim o coletivo com o interesse de seus pares, mas a função social do ser vivo abre-lhes o espaço duma visão peculiar do coletivo.
Não convém todavia generalizar essa forma de trabalho para o conjunto da sociedade. Outra é a situação daqueles que prestam serviços individualmente como encanadores, eletricistas, médicos, professores etc. Do mesmo modo que um médico emprega um esquema previamente armado para tratar duma determinada doença, o encanador cumpre suas tarefas aplicando técnicas cristalizadas a fim de obter os resultados desejados. Nesses casos o trabalho é quase sempre uma espécie de incidente constante do qual o melhor é livrar-se o mais rapidamente possível.
O que sugerem essas duas formas de prestação de serviços, entendidas como exemplos paradigmáticos do trabalho contemporâneo? Que sua alienação, ao invés de se enraizar exclusivamente na sua mercantilização, na transformação do trabalho em força de trabalho e, por conseguinte, sendo afetado pelo fetiche da mercadoria, também se perfaz na incapacidade do trabalho encontrar uma medida coletiva, mesmo ilusória, de generalizar-se enquanto representante duma coletividade, em consequência, impossibilidade de encontrar uma face pública. No entanto, precisamente conforme tende para a defesa de interesses privados ainda se abre para um público, na medida em que requer a publicidade da informação. Neste interstício surge uma prestação de serviço sui generis, a atividade política, quando o interesse singular do representante, seja qual for a maneira direta ou indireta pela qual adquire essa função, tem como meta fazer valer os interesses coletivos, embora muitas vezes mascarando interesses particulares. A dificuldade reside em gerir essa contradição, paradigmaticamente residindo no trabalho da representação, no esforço constante de redefinir o que pode ser privado e o que pode ser público. E neste plano, não basta ser mais informado, o representante carece de práticas coletivas que possam conferir à informação plena efetividade ao nível de relacionamentos institucionais. É neste jogo entre o indivíduo e a instituição, vale dizer, entre a ação individual e comportamentos regulados e enraizados na prática cotidiana, que a contradição, sem ser superada, se resolve num exercício de conciliação.
Noutras palavras, se na verdade o conflito entre o privado e o público ultrapassa de longe a oposição entre o cidadão e o Estado, ele somente deixa de destruir as partes conflitantes, se ambas caminharem no sentido de instaurar e reforçar instituições democráticas, a saber, instituições onde as várias partes tenham vozes e estejam dispostas a ceder a fim de encontrar uma solução negociada. Instituições, portanto, que em grande parte sejam tribunais de si mesmas. Mas para isso é preciso que se organizem a fim de que todo particularismo possa vir à tona, a fim de ser rejeitado ou assumido quando a conjuntura o obriga. Desse ponto de vista, cabe encontrar um meio termo entre a força privatizante das personalidades narcisistas e os interesses corporativos, de um lado, e as forças totalitárias, de outro, que, percebendo os perigos os particularismos, terminam por negar o direito da privacidade e da própria associação livre. Desse modo, o conflito latente entre o privado e o público precisa ser cada vez mais explicitado, a fim de que as pessoas possam, providas de instrumentos pertinentes, circunscrever os terrenos onde se legitimem as diferenças entre as pretensões de privacidade e as necessidades coletivas. Cada passo no sentido de fazer avançar uma esfera pública, capaz de equilibrar sadiamente a transparência e o segredo, demanda, pois, o esforço de inventar mecanismos institucionais de negociação, assim como de retomar os cuidados para defender os direitos da privacidade. O desafio é criar tais mecanismos indo além do que hoje se restringe à esfera do Estado.

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