São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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O Público e o Privado

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A oposição entre o público e o privado passa hoje em dia por uma profunda revolução, distanciando-a tanto de sua origem grega, quanto daquele processo que, a partir do século 18, a repensa em função do aparecimento do Estado moderno. Mas no nosso horizonte ainda persiste a herança desta última tradição, particularmente naquele ponto que concebe o privado ligando-se de modo direto ao interesse do indivíduo que se apropria duma parte do mundo exterior, de sorte que, em contrapartida, o público se originaria quer do jogo dos interesses privados, quer da imposição de um ideal superior de ordem humana ou divina.
Não vejo razões de peso para manter-me neste caminho genético que toma como ponto de partida a ação de um sujeito evidenciando-se a si mesmo e, nesse processo, abrindo-se para o mundo. Prefiro desde logo atentar para o uso que esta maneira bivalente de falar, pensar e julgar sobre as ações humanas implica. Está incluída na gramática da palavra "privado" sua oposição ao "público". Não pretendo, contudo, realizar apenas uma pesquisa de caráter gramatical, mas examinar como hoje em dia nossos contemporâneos armam essa oposição, julgam certas ações dessa ótica e definem certas políticas em vista dela, levando em conta suas condições de efetividade. Daí o horizonte histórico desta investigação, sem propriamente consistir num estudo da história. Cabe desenhar o que esta oposição está hoje significando nos nossos discursos e nas nossas práticas. (...)
Como se situam tais oposições no mundo contemporâneo, quando o fundo público representa parte considerável do PIB e sendo posto em função de um planejamento geral da nação? Como em particular as novas formas de trabalho afetam a constituição desse fundo, na medida em que a informação passa a ser o nervo delas. A partir do século 18 salientou-se que o desenvolvimento do capitalismo, já na sua fase comercial, introduziu nessa oposição entre o público e privado a esfera do social, o que obriga a uma total redefinição dos termos opostos. Esta história é muito conhecida e, vista de seu ponto final formulado no século 19, pode ser resumida em poucas palavras: no modo de produção capitalista, ao menos pensado no seu estado puro, somente entram no processo de trabalho elementos que já estão sob a forma mercantil, a saber, cuja sociabilidade é medida, nos termos da economia política clássica e repensados por Marx, segundo o padrão do trabalho abstrato. Isto faz com que o trabalho adquira uma forma de sociabilidade desconhecida até então, emprestando a ele e a seus produtos um caráter social alienado: uma comunidade de produtores e de consumidores se amolda de tal forma que o exercício de seus interesses privados resulta num interesse comum, aparecendo como se fosse uma lei natural: relações sociais se apresentam como se fossem relações entre coisas. Isto é, o trabalho adquire a potência de se socializar independentemente da interferência do Estado, que passa então a mediar tão-só conflitos, colocando seus fundos públicos a serviço do desenvolvimento econômico, estimulando um processo de travejamento intersubjetivo, no fim do qual ele deveria retirar-se.
É o que Mandeville e Adam Smith já tinham exprimido respectivamente na fábula dos vícios e na metáfora da mão invisível do mercado. Sabemos que essa independência do sistema geral da produção capitalista em face do Estado é muito mais lógica do que propriamente histórica, posto que o Estado propicia o desenvolvimento do capitalismo e este reformula as funções e a estrutura daquele. No limite, entretanto, instalou-se uma tensão sui generis entre o Estado e uma comunidade de interesses convergentes e conflitantes, que passou a ser chamada sociedade civil. Ora, esse conceito subverte por completo o pensamento político tradicional.
Essa comunidade social não é caracteristicamente pública, visto que nem sempre interesses, direitos, deveres de trabalhadores e empresários confluem num interesse comum. Se a sociedade civil possui leis próprias de desenvolvimento e integração, não é por isso que pode dispensar o Estado, no mínimo como poder de racionalizar seus excessos e suas carências. Mas essa racionalização só pode ser feita se o próprio Estado, como padrão de medida de conflitos permanentes, cujo limite, porém, pode resultar na destruição das partes, representar, espelhar a unidade necessária, a comun-idade, dos elementos em litígio. Se Hegel vê nesse ideal o acabamento racional da liberdade objetiva, Marx, ao contrário, nele denuncia a ilusão necessária pela qual o interesse público pode ser posto a serviço das classes dominantes. Em suma, muitas vezes o estatal é comum, público, apenas na aparência.
A instalação do sistema capitalista cria um novo público formado por aqueles indivíduos que, no todo ou na parte, não são inteiramente mercantilizados. Posto que todos os elementos que integram o sistema o fazem sob forma mercantil, o trabalho se separa do indivíduo trabalhador como a mercadoria força de trabalho, de sorte que o agente fica sem as condições requeridas para sua atuação. Mas se o capital primordialmente se interessa pela força de trabalho e não pelo indivíduo que a executa, não tem como ignorar que ela é posta por meio dele, que ao mesmo tempo deseja e resiste à sua mercantilização. É sabido que o socialismo nasceu dessa resistência, nos seus primeiros tempos ainda inspirado nos moldes do trabalho artesão, e se não se pode dizer que o Welfare State se originou dessa mobilização social, ao menos não se pode duvidar que tenha como efeito a reformulação desse conflito.
Todo esse processo pode ser visto de outro ângulo. Se o capitalismo traz a mercantilização do trabalho, acarreta ao mesmo tempo o esforço de resistência a ela, tanto da parte do trabalhador quanto do Estado, como representante dos interesses permanentes do sistema. O Welfare State, o Estado-providência, é a solução encontrada para regular os procedimentos de desmercantilização da força de trabalho. Não cabe, como assinala Gosta Esping-Andersen, em seu livro "The Three Worlds of Welfare Capitalism" (1990), pensar esse novo Estado sob uma única forma; pelo contrário, os vários exemplos se aglutinam em torno de três regimes, conservador, liberal-radical e socialista, conforme atuaram diferentemente a mobilização social, as burocracias estatais, os partidos políticos e assim por diante.(...) Nisso tudo, importa-nos apenas salientar que o processo de desmercantilização cria esferas de interesse público, no cruzamento do Estado e da sociedade civil, que todavia não são abertas indiscriminadamente para todos. Em suma, o público vem segmentado. Assim é que nem todos têm acesso indiscriminado, comum, à aposentadoria, ao sistema de saúde (...).
Isto já bastaria para embaralhar as relações entre o público e o privado, tal como eram pensadas pela tradição clássica. Mas hoje em dia o Estado-providência entra em crise, tanto porque educação, saúde, previdência etc aumentam consideravelmente seus custos, quanto porque o capital se internacionaliza de forma inaudita, atravessando as fronteiras do Estado-nação, utilizando sua estrutura para uma competição que se aglutina em grandes grupos regionais. Já no início do século passado tornava-se evidente a impossibilidade de combinar harmonicamente Estado e nação, muitos Estados -o exemplo clássico é dado pelos países da Europa Central- precisavam aglutinar sob um mesmo regime jurídico nações de costumes incompatíveis, quando não contraditórios. (...) Essa implosão da sociedade civil marca a crise tal como é vivida nos tempos de hoje. Nessas circunstâncias, que sentido pertinente ainda é possível atribuir à oposição público e privado?
Desde logo se percebe que o ponto a partir do qual se armam os fragmentos da sociedade civil translada-se do plano do trabalho para o plano do consumo. E o indivíduo consumista tende a consumir privadamente o público, ao invés de, com o intuito de assegurar sua própria liberdade, tratar de separar os dois campos. Mais do que a uma distinção de esfera assistimos à interpenetração de dois movimentos conflitantes. De um lado, constata-se uma espécie de tirania da intimidade, segundo os termos consagrados de Richard Sennet: muita gente está disposta a despejar nos ouvidos de um desconhecido os meandros de sua vida particular, até mesmo vir a público expor sua privacidade para lograr os ansiados "quinze minutos de celebridade". Numa sociedade narcisista e hedonística a exposição pública se converte numa forma de alimentar o próprio ânimo privado, como se milhares de olhos anônimos fossem necessários para que as pessoas chegassem à sua própria identidade. De outro lado, tudo o que é público tende a ser privatizado. (...)
O estilhaçamento da sociedade civil, cujas partes se afastam num movimento centrífugo, põe em xeque a própria idéia de pertencer, de comum, que residia no núcleo do conceito de Estado (koinonia), desde que ele foi pensado pelos gregos (o anacronismo de empregar "Estado" para significar "polis" vale a pena ser cometido para sublinhar o caráter de algo em comum que permanece nessas várias formas de coletivo). O comum não é mais a meta para a qual convergem as atividades individuais, o ideal coletivo superior às limitações de cada pessoa, mas o pressuposto do qual se parte para que cada ser humano encontre e afirme sua própria identidade individualizada. Essa inversão, assim me parece, está associada ao peso que o consumo passa a ter no interior do processo de trabalho como tal.
Não estou me esquecendo das lições de Marx ao sublinhar a íntima imbricação dos vários momentos do processo desse trabalho, particularmente quando inserido no movimento da produção com um todo. Cabe lembrar que, nas formas pré-capitalistas de sociabilidade, o processo de trabalho não aparecia como solda das relações sociais, de sorte que a vida propriamente ativa tinha como parâmetro a vida contemplativa, exercida por não-trabalhadores. Max Weber nos mostrou como o espírito do capitalismo esteve ligado a uma revalorização do trabalho e da acumulação, cujos frutos passaram a evidenciar favores do Senhor. Mas nossa sociedade leiga é aquela onde predominam os trabalhadores sobretudo na área de serviços, na qual por conseguinte, o relacionamento deles com seus produtos privilegia o sujeito, em vez do objeto como marca duma excelência realizada. Sociedade de empregados, que, se na verdade continuam separados de suas condições de trabalho, concebem essa junção muito menos como forma de restaurar a unidade de seus corpos inorgânicos, o espaço onde podiam mirar-se e encontrar a si mesmos, e muito mais como o tributo inexpressivo que devem pagar para atingir a esfera do consumo.(...)
Quando a maioria da população se emprega em serviços, quando o próprio trabalho fabril se processa como serviço a outrem, mecânico ou humano, trabalhar se confunde com exibir-se, evidenciar suas qualidades ao invés de encontrá-las e aperfeiçoá-las através da manipulação amorosa do produto. A despeito de fabricar valores de troca, importa menos o objeto sendo adequado para a troca de objetos de uso, muito mais o próprio exercício do trabalho se dando como meio de pagamento legítimo de um provento, dinheiro líquido cuja posse situa num status. Os indivíduos se hierarquizam segundo o valor de seus ordenados e tudo aquilo que estes possam comprar como símbolo de diferenciação. O que valia no círculo restrito duma corte européia do século 18, quando o rei distribuía benesses como forma de diferenciar socialmente, hoje vale para a sociedade democrática, o mercado ocupando o lugar do rei e os fidalgos sendo substituídos por indivíduos consumidores, cujo mote é subir na vida. Se isso não destrói em última instância o fetiche da mercadoria, que projeta em coisas relações sociais, agora essas mesmas coisas são tomadas como agentes a nos prestar serviços. Os objetos se tornaram criados e os criados-mudos deixaram de ser mudos, de sorte que o
(continua)

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