São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Erudição e estilo contra o dogmatismo econômico

JOSÉ ROBERTO CAMPOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Pelo acúmulo de fracassos dos planos de estabilização e pela subsequente overdose de receitas, diagnósticos, obscurantismos, virtuosismos e egolatrias, a maior parte do que os economistas escrevem -e o que eles escrevem tem sido mais lido desde 1986, pelo menos- deveria estar enterrado no cemitério do "nhenhenhém" econômico.
Falta ar na atmosfera pesada do debate entre os especialistas. As soluções ora são óbvias demais e um crédulo qualquer se pergunta porque elas não foram executadas muito antes de chegarmos à beira do abismo, ora são complexas demais (ou ininteligíveis) a ponto de gerar apatia ou indiferença.
São raros os economistas que têm idéias claras -logo escrevam bem- e procuram exercer a arte urgente do convencimento pelo brilho de seus próprios argumentos. A "velha guarda" que passou pelos governos militares têm se saído melhor no palco dos debates -o ex-ministro Mário Henrique Simonsen, nas páginas da revista "Exame", Roberto Campos e Delfim Netto nas colunas semanais da Folha. É uma questão em aberto saber por que em geral os expoentes da esquerda ou da heterodoxia se colocam alguns degraus abaixo em clareza, elegância e eloquência em relação aos decanos da economia brasileira.
Experiência e longevidade não são tudo neste campo. "As Partes & o Todo", coletânea do economista Eduardo Giannetti da Fonseca, PhD pela Universidade de Cambridge e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, prova isto. Os 59 artigos reunidos no livro -a quase totalidade publicada em sua coluna semanal no caderno "Finanças, da Folha- são uma amostra generosa de erudição, estilo e originalidade em temas nos quais prevalecem a penumbra e o mau humor.
Giannetti ataca questões conhecidas -o Estado, o atraso do país, a inflação etc- sempre por um ângulo inesperado. "A familiaridade é inimiga do conhecimento", diz ele, logo no prefácio. Para isto, convoca em auxílio de sua argumentação economistas clássicos e modernos, filósofos e poetas. O índice onomástico tem 219 nomes, de Lucrécio a Wittgenstein. Giannetti se sai bem na arte de evitar a gratuidade da erudição -consegue que ela empurre para frente o texto, em vez de soterrá-lo.
O método tampouco é gratuito. "Aquele que for somente um economista não tem condições de ser um bom economista, pois todos os nossos problemas tocam em questões de filosofia", afirma o autor, citando o austríaco Friedrich von Hayek, um dos expoentes do neoliberalismo.
Giannetti não se auto-intitula, mas se filia às correntes neoliberais. Acredita que a ação reguladora do mercado é muito superior à coordenação e ingerência do Estado nas atividades econômicas. São idéias conhecidas superficialmente mas é de seu poder analítico que arranca um vasto arsenal de conclusões provocadoras. "O egoísmo sem freios e o oportunismo tendem a florescer não nos países onde o capitalismo desenvolveu-se, mas naqueles onde ele não se firma", escreve no capítulo "A Base Moral da Economia Capitalista". Mostra o caos social e político brasileiro no alegórico "Trânsito É Microcosmo de Nossa Sociedade", um dos melhores artigos do livro.
"Cada motorista individual busca o que é melhor para si, o que é natural. Mas como as regras de interesse comum -o mínimo legal da convivência civilizada- são amplamente desrespeitadas, todos terminam vivendo em situação bem pior do que poderiam viver. O todo nega, frustra e faz literalmente picadinho da ambição das partes. É o paraíso (infernal) dos tolos". Nova conclusão aparece dezenas de páginas à frente: "Nosso problema já não é mais ideológico ou de esquerda versus direita -é civilizar o país".
Giannetti evita os desvarios dogmáticos comuns aos atuais "inimigos" do Estado. É extremamente honesto em seus argumentos, a tal ponto que o leitor não deve pular o prefácio se quiser conhecer o caminho pelo qual um adorador de Marx hoje o despreza e olha com simpatia Hayek. "O pensador da virada (...) foi Nietzsche", confessa.
Suas convicções firmes, expressas em uma lógica agudamente persuasiva, poderiam lhe trazer a mesma incompreensão dos políticos para com o clássico David Ricardo, relatado no livro -ele pode parecer "um ser vindo de outro planeta". E, para quem dele discorda, reservar-lhe o vaticínio de Thomas Huxley, citado na pág. 123: "O destino do conhecimento é começar como heresia e terminar como superstição".

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