São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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A deusa do jazz

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Deusa e mártir. Ou, simplesmente, "lady". Lady Day, como Count Basie um dia a chamou -e todos se curvaram. Porque ela tinha o ar de uma grande dama, naturalmente elegante e altiva, majestosa no andar e ofuscante na beleza. Pele de cetim, lábios pecaminosos, Billie era bela como uma... como uma deusa. E ainda nem tocamos no principal, sua voz e seu jeito ímpar de cantar. Billie foi, simplesmente, a maior cantora de jazz de todos os tempos. "A mais influente intérprete de música popular do século", corrige um de seus mais orgulhosos discípulos -ninguém menos que Frank Sinatra.
Embora os deuses não tenham idade, Billie faria hoje 80 anos. Difícil imaginá-la com tanto tempo de vida, tamanhas foram as agressões que seu organismo sofreu, até finalmente sucumbir a uma cirrose hepática, em julho de 1959. Tão ou mais difícil, ainda, é imaginá-la em atividade num mercado musical como o de hoje, dominado por falsos gênios e ruidosos brucutus (plugged e unplugged). Billie tocou com Benny Goodman, Duke Ellington, Count Basie, Lester Young e dezenas de outros ases jazzísticos que também já se foram. Wynton Marsalis seria pouco para ela.
Músicas, tudo bem. As eternas serviriam. Billie cantou e gravou todos os grandes compositores americanos. Continuaria cantando. Talvez anexasse ao seu repertório algumas baladas de Michel Legrand e Henry Mancini. Talvez. E a elas daria o mesmo tratamento dispensado a Jerome Kern, Cole Porter, Gershwin & cia, adaptando-as ao seu estilo agridoce, langoroso e rascante, com as sutis alterações harmônicas cabíveis. Billie recompunha todas as canções, pontuando e fraseando como ninguém fazia igual, espalhando o ritmo como uma manteiga.
Não eram blues, ao contrário da crença geral. Eram, quase sempre, apenas canções ou baladas, recriadas da maneira mais "cool" possível, daí a ilusão de que ela e Bessie Smith jogavam no mesmo time. Se gravou uma dúzia de blues foi muito. A fama, contudo, ficou. Gerald Clarke sepulta esse equívoco na definitiva biografia que publicou um ano atrás, nos EUA, cuja tradução (de Jamari França) está saindo pela José Olympio, com uma discografia preparada por João Máximo e o mesmo título da versão original: "Wishing On the Moon - A Vida e o Tempo de Billie Holiday".
Para reforçar sua opinião, de resto abalizada (ele é o editor da enciclopédia de música popular da Penguin), Clarke anexou testemunhos preciosos como, por exemplo, o de John Hammond, que já no final dos anos 30, quando descobriu Billie numa espelunca do Harlem, fazia a ressalva: "Ela, definitivamente, não canta blues".
Talvez seja este um detalhe irrelevante. Outros, não. E o livro de Clarke está cheio deles, desmentindo uma batelada de erros factuais e fantasias não menos perniciosas contidos na autobiografia "Lady Sings the Blues", que o jornalista William Dufty ajudou a escrever, quatro anos antes de Billie morrer.
Não é verdade, entre outras coisas, que os pais de Billie se casaram ainda meninos: ele com 18, ela com 16, e a filha com três. Clarence, que tocou banjo e guitarra na banda de Fletcher Henderson, nunca se casou com Sadie e cedo abandonou a família. A ausência do pai foi uma experiência traumatica que Eleanora Fagan -depois Billie (como a atriz Billie Dove), a princípio Halliday e, finalmente, Holiday- carregou para o resto da vida. Billie idealizava o pai, a ponto de transformá-lo em herói da Primeira Guerra Mundial, outra balela desmontada por Clarke, que além de bom pesquisador entende um bocado de música.
"Wishing On the Moon" não vale apenas pelas histórias curiosas e, às vezes, chocantes que contém, mas, acima de tudo, pelas informações e interpretações musicais feitas pelo autor. Não é só uma biografia franca e alentada de Lady Day. Por suas quase 500 páginas desfilam todas as figuras e todos os locais que ajudaram a construir a mitologia jazzística dos anos 30, 40 e 50.
Nascida na Filadélfia (Pensilvânia) e criada em Baltimore (Maryland), Billie teve uma infância perversora. Limpou chão de bordel, sofreu estupro e outros abusos que fatalmente conduzem à delinquência. Se não tivesse sido salva pela música, acabaria prostituta, ofício que por uns tempos, assaz bicudos, viu-se obrigada a encarar. Já cantava, então, pois desde os 15 anos frequentava espeluncas no Harlem, o bairro negro de Nova York, para onde se mudou com a mãe, em 1929.
O retrato que Clarke nos oferece do Harlem daquela época é de pôr água na boca. E assustar as almas mais cândidas. Nem só de jazz -e que jazz!- viviam os seus inferninhos. Sexo e drogas rolavam solto em vários deles. As mocinhas que lá davam duro, como cantoras ou dançarinas, tinham por hábito apanhar com os grandes lábios as gorjetas que os fregueses lhes atiravam. Billie se recusava a fazer esse número. Por isso, acredita-se, a apelidaram de "lady".
É desse tempo um templo de luxúria e promiscuidade, chamado Daisy Chain, sigilosamente frequentado por astros do show business, no qual a clientela já entrava tirando a roupa. Claro que Billie lá pôs os pés e o resto do corpo, que diziam escultural e foi muito cobiçado por homens e mulheres. Com ou sem segundas intenções. Ginger Rogers confessou invejar sua boca. Rosalind Russell admitiu imitar o jeito de ela andar -sem o mesmo efeito, pelo visto. Orson Welles e Benny Goodman cobiçavam tudo. Tallulah Bankhead também. Billie saciou os três.
Foi uma máquina de sexo, antes de se entregar às drogas mais pesadas. Fazia questão de salientar que em suas relações homossexuais assumia sempre "o papel masculino". Seu orgasmo era um parto. Suspeita-se que tenha mergulhado de cabeça em ópio, cocaína e heroína para se soltar mais. Na cama e no palco, no qual, aliás, sempre entrava com a timidez de uma principiante.
Não teve sorte com nenhum dos homens aos quais se ligou, sádicos gigolôs que a enchiam de porrada, a entupiam de drogas e a roubaram até o último centavo. Billie poderia proclamar: "Minha vida é uma canção". Pensando, naturalmente, em "Ain't Nobody Business If I Do" e "My Man", duas odes ao sadomasoquismo feminino.
Deusa, lady, mártir. Mas não santa. Presa em 1947 (pegou um ano de cadeia e perdeu o direito em cantar em casas noturnas de Nova York) e em 1956, sempre por causa das drogas, divertia-se injetando heroína num de seus cachorros e dando torrões de ácido lisérgico aos cavalos do Central Park. No auge da piração, já sem um milímetro livre nos braços para os seus picos, apelou para a ponta dos dedos e, por fim, para a vagina.
Poucos casos de autodestruição foram tão impressionantes e lamentáveis. A vida que Billie teve não foi, definitivamente, a que ela pediu à lua.

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