São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Herança da Lady Day

A Lady Day influenciou várias gerações de cantoras de jazz

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Todas as cantoras deveriam se ajoelhar e agradecer a Deus que tenha existido uma Billie Holiday".
A frase da cantora de jazz inglesa Annie Ross (que participou há pouco do filme "Short Cuts", de Robert Altman) sintetiza bem a poderosa influência da maior vocalista do jazz. Não apenas suas contemporâneas, mas também as gerações posteriores de cantoras sofreram, em algum grau, o impacto das emocionantes performances da Lady Day.
Essa avassaladora herança musical não se restringiu apenas aos círculos do jazz, muito menos às fronteiras dos EUA. Ainda seis anos atrás, aqui mesmo no Brasil, uma jovem e promissora cantora carioca estreou em disco com uma interpretação de "Bess, You Is My Woman Now" (ária da ópera "Porgy and Bess", de Gershwin), evidentemente inspirada no estilo de Billie Holiday.
Se, no caso da eclética Marisa Monte, a Lady Day foi apenas uma entre outros modelos vocais, bem mais forte foi a identificação da suíça Miriam Klein. Em 1973, ela deixou muita gente boquiaberta ao gravar, na Alemanha, o álbum "Lady Like" (selo original MPS, lançado aqui pela Copacabana), ao lado de feras do jazz, como o saxofonista Dexter Gordon e o trompetista Roy Eldridge (que, inclusive, acompanhou a própria Billie em várias gravações).
A cantora suíça assimilou tão bem o timbre e estilo vocal da norte-americana, que o crítico Leonard Feather (autor das notas do álbum e amigo de Billie) resolveu fazer um teste. Em seu programa de rádio, na californiana KBÁA, ele misturou duas gravações da desconhecida européia com outras da Lady Day e perguntou a seus ouvintes quem estava cantando. Ninguém desconfiou.
Porém, só uma surpreendente semelhança musical não bastou para que Miriam Klein extrapolasse o mero registro da curiosidade -depois desse disco, ela retornou ao ostracismo. Ao contrário de tantas outras talentosas apreciadoras da Lady Day, talvez não tenha compreendido que jamais conquistaria um lugar no cenário musical enquanto seguisse copiando sua cantora favorita.
Mais do que um timbre, uma sonoridade, um fraseado, ou mesmo um repertório específico, a maior lição deixada por Billie Holiday foi mesmo sua atitude como artista: ao cantar, só pretendia ser ela mesma. "Ela canta do jeito que ela é", definiu a original Carmen McRae (1920-1994), que ainda era teen quando a conheceu.
"Ela foi uma das mulheres mais impressionantes que eu encontrei em minha vida e me deixou apavorada em relação ao que significava cantar. Parecia tão perfeita que eu sentia que qualquer coisa depois dela seria anticlimática", disse Carmen, em 1970, confessando ao baterista e escritor Art Taylor que chegou a ficar com receio de se lançar na carreira de cantora, por se comparar com sua ídola.
Para Billie Holiday, cantar não deveria ser diferente do que faz um instrumentista: um cantor seria simplesmente um músico que usa suas cordas vocais para improvisar. "Eu não penso que estou cantando. Eu me sinto como se tocasse um instrumento de sopro", explicou ela, certa vez.
"Tento improvisar como Lester Young, como Louis Armstrong, ou algum outro que eu admire. O que sai é o que eu sinto. Odeio simplesmente cantar. Tenho que adaptar a canção ao meu jeito de fazer. Isso é tudo que eu sei."
O "feeling" (sentir a música) era o que Billie mais valorizava na interpretação. Dois de seus parceiros, o guitarrista Barney Kessel e o pianista Jimmy Rowles, contam que às vezes ela escolhia canções difíceis, o que os obrigava a anotar as sequências harmônicas e manter as partituras por perto, para não se perderem durante os solos.
Billie não admitia isso. "Não precisamos de papel nenhum por aqui. Vamos sentir a música", exigia. E o fato de não saber ler partituras não a impediu de possuir uma concepção harmônica bastante avançada para a época, equivalente à de grandes compositores da música deste século, como demonstram seus improvisos.
"Ela cantava qualquer música como um todo. Não trabalhava compasso por compasso, do jeito que a maioria dos cantores faz", disse o pianista Mal Waldron, outro de seus últimos parceiros, percebendo que Billie jamais agia como uma vocalista comum.
"Os músicos de jazz pensam uma canção em termos de uma unidade, de uma sequência, como ela se move; é o que você tem que fazer, se vai construir um solo sobre essa música. Era assim que ela ouvia uma canção. Ela respondia a tudo como um músico de jazz", explicou Waldron.
É quase impossível fazer uma lista completa das herdeiras musicais de Billie Holiday, mas uma relação necessariamente deve começar pelos nomes de Abbey Lincoln, Carmen McRae, Betty Carter, Nina Simone, Dee Dee Bridgewater, Anita O'Day, Annie Ross e Cleo Laine, entre outras.
E, mesmo que muitos prefiram não confessar, até os cantores receberam influências da Lady Day. O acrobático Al Jarreau, por exemplo, já reconheceu que se inspirou tanto nela, como em Nat King Cole e no trio Lambert, Hendricks & Ross (a mesma Annie Ross; aqui dois afluentes de Holiday acabaram se encontrando).
Entre tantos descendentes musicais, uma herdeira inconteste de Billie é a cantora, compositora e atriz Abbey Lincoln. Alçada aos círculos jazzísticos em 1960, através do polêmico álbum do baterista Max Roach (seu ex-marido), "We Insist! Freedom Now Suite", de lá para cá Abbey formulou uma síntese do "approach" social de Billie (especialmente sua interpretação da trágica "Strange Fruit") com o repertório mais próximo do romantismo.
"Ela foi minha primeira mentora", disse Abbey à Folha, dois anos atrás. "Billie Holiday foi crucial para meu modo de cantar, principalmente quando descobri que o som da voz dela era tão real, tão natural, ou mesmo pelo tipo de canções que ela interpretava. Você pode entender o mundo em que ela vivia através do que ela cantava. Eu sigo essa tradição. Há outras coisas no mundo para nos preocuparmos além da relação amorosa entre um homem e uma mulher."
Ruth Brown -veterana cantora de jazz e "rhythm & blues", que voltou a ser cultuada nos últimos anos (fez shows em São Paulo, em 91)- nunca mais esqueceu o dia em que Billie foi assisti-la, no Cafe Society, em Nova York, no final dos anos 40.
Naquela época, Ruth cantava vários sucessos do repertório de sua ídola e fez questão de mostrar como sabia imitá-la, não apenas no estilo vocal, mas até mesmo usando uma gardênia no cabelo -marca registrada da Lady Day.
Quando retornou ao camarim, Billie já estava à sua espera. "Você é uma grande cantora e tem muitas possibilidades. Não precisa me copiar", disse, ensinando à jovem Ruth a mais básica lição. "Acho que você precisa descobrir quem você é, porque enquanto você soar como eu, ninguém jamais tentará soar como você."
Ainda hoje, durante seus shows, miss Brown costuma interpretar canções da Lady Day, mas sem imitá-la, apenas como um tributo. Aprendeu a lição: só existe uma Billie Holiday.

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