São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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As top models e o grau zero da beleza

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quem é, para os homens, o mais admirável de seus pares? Para as mulheres, quem é "a" mais invejável
Recuemos um ou dois séculos.
Tórax carregado de medalhas -cruz de ferro ou da rainha Vitória, prêmio Nobel ou legião de Honra, um merecido título de "Sir"-, viveu mais no front do que em sua própria casa. Comandou, à frente de todos, a carga de cavalaria que mudou o curso da guerra -e da história! Embora nada homossexual, talvez seja algo misógino -mulheres (no plural) não são a meta: apenas um prêmio(zinho)- e só se sente bem arriscando-se em terra estranha, inóspita, na companhia de outros homens. Fala pouco: o essencial. Cada palavra sua conta. Ele incentiva, anima, lidera e, sempre num meio hostil, decide e age. Seja no campo de batalha ou no laboratório, à escrivaninha, no parlamento ou na reunião de negócios, ele é sobretudo o guerreiro.
E ela? É linda, maravilhosa, deslumbrante. Não requer outra definição exceto a de sua simples presença que, de alguma forma, persiste mesmo quando se ausenta. Não precisa sequer se mover mas, se preferir fazê-lo, um trejeito facial, um sorriso fugaz, um olhar diferente bastam. Para que mais? É, por exemplo, uma atriz cuja mera aparição no palco magnetiza a todos e, se ainda por cima canta -soprano que seja, ou contralto-, sua voz não é conquista, mas tributo. Ela apenas é.
Consta que mulheres se suicidaram quando Rodolfo Valentino morreu. Havia, porém, homem que o admirasse? Alguns talvez lhe invejassem as mulheres. John Wayne pode ser durão nas telas, mas quem do sexo masculino leva a sério não o papel mas, por trás dele, o homem? Vivien Leigh, no entanto, é linda e desejável por si mesma. Quem se importa com Scarlett O'Hara? E quando atriz e personagem convergem -Louise Brooks encarnando Lulu (ou vice-versa)- é ainda melhor. Cabe a homens e mulheres cultuá-la.
Será mesmo necessário recuar no tempo?
Hoje em dia, tanto homens quanto mulheres admiram Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Christy Turlington, Cindy Crawford (nesta ordem, no meu ranking) e algumas outras. Mais: admiram-nas não só à distância, como geralmente imóveis, em fotos. Uma Schiffer borrada no jornal é digna de mais atenção do que a Bósnia.
Contudo, algo mudou nos dois últimos séculos. Pois não interessa muito se ela namora um prestidigitador. E o escândalo máximo em que uma Linda Evangelista se envolve é o de cortar rente seu cabelo ou tingi-lo. O meio brasileiro -mais rarefeito- requer, é claro, histórias contundentes. Assim -"shame and scandal in the family"- Cláudia Liz e Beth Prado trocam um beijinho na passarela.
O problema é que, após conhecer -nem sequer biblicamente- uma top model, não há mais perdão. Sua existência dita não "um", mas "O" (com maiúscula) padrão de beleza. Padrão? Sua existência é o sinônimo da beleza. Não se trata mais dos dotes individuais de alguma mulher linda, deslumbrante ou maravilhosa: trata-se de um dogma. Pior: de um dogma que se impõe pela força de sua argumentação irrefutável. A beleza de um top model não é nem resultado da imaginação potente de um artista, nem produto da história de uma civilização. Ela provém de uma combinação favorável de genes aliada, no longo prazo, à quantidade correta das proteínas certas, num contexto favorável determinado pela lei probabilística dos grandes números. Dadas as condições certas, ela surgirá.
Qual o seu sentido? Não é, em primeiro lugar, erótico. Se houvesse relação direta entre prazer e beleza, quem é que seria capaz de imaginar o orgasmo desencadeado por uma das dez tops? No entanto, elas têm lá seus maridos, amantes, namorados. Só que não enquanto top models e sim na condição de simples meninas bonitinhas. É duvidoso que haja uma experiência erótica à altura de sua beleza institucional. As tops, enquanto tais, não foram feitas para a cópula. Para tanto, precisam declinar de sua condição pública, pois estão nessa além do "grau do terrível que ainda suportamos" (Rilke). São pós-eróticas.
Teriam, então, um sentido psicanalítico? Dificilmente. A psicanálise é pobre demais para abarcar este fenômeno. Se é que já foi rica o bastante para qualquer outro. Sociológico? O máximo que se pode dizer é que, passarela por passarela, o desfile de modas tornou-se o carnaval dos ricos. E isso é bem pouco. Outras considerações são justas, verossímeis e, nem por isso, pertinentes. Há a adolescente que troca os estudos pela academia e morre anoréxica. Há o estuprador que descobre que sua mulher é desdentada e bexiguenta.
Há muita coisa, embora talvez somente uma seja essencial. O computador não pensa por nós, mas, ao que parece, mostra-nos como é que funciona nosso cérebro. Depois de Platão, Hegel e Kant, chegamos à simplicidade extrema do sistema binário. Se o que buscamos, séculos a fio, era a beleza, ela está -sempre esteve- no júbilo de proporções precisamente calculáveis. Ou seja: Pitágoras sem Gõdel. Proporções harmônicas do corpo e do rosto humanos. Não há razão para buscá-la -a beleza- na Renascença italiana ou na Antiguidade grega. Basta abrir os jornais ou, com melhor definição, as revistas ilustradas, para encontrá-la.
Entre milhões de fêmeas corretamente nutridas e exercitadas, a perfeição despontará inevitavelmente. Ou seja, ela está onde sempre foi procurada. Depois de divas e atrizes, chegou-se ao grau zero da beleza. A top model não representa nem canta e sua vida privada não importa. Contrário de todo princípio masculino, sua imobilidade essencial seria excessiva até mesmo no Hindustão. Como não admirá-la?
A única decorrência digna de nota dessa admiração é a seguinte: doravante, escultores e cineastas, poetas e pintores estão definitivamente dispensados de procurar o belo. Libertados pelas top models, eles podem enfim dedicar-se a outras tarefas. Talvez mais importantes. Talvez menos.

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