São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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As obsessões lógicas de Giannotti

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando publicou seu "Trabalho e Reflexão -Ensaios para uma Dialética da Sociabilidade", em 1983, José Arthur Giannotti parecia estar coroando uma vida inteira de atividade intelectual e acadêmica com uma espécie de súmula filósofica. Agora, 12 anos depois, o filósofo volta ao centro do palco das idéias no país com o livro "Apresentação do Mundo - Considerações sobre o Pensamento de Ludwig Wittgenstein", que a Companhia das Letras deve lançar em aproximadamente um mês.
Como sempre ocorre com os livros de Giannotti, a expectativa é mais uma vez enorme. Que se preparem, então, os espíritos mais afoitos. Se "Trabalho e Reflexão" foi considerada, com razão, uma obra dificílima de se atravessar, este novo livro encerra dificuldades de compreensão talvez ainda maiores.
Para se ter uma idéia do tamanho da pedra que espera o leitor pelo meio do caminho, basta dizer que ninguém menos do que Gérard Lebrun, um dos maiores conhecedores da história da filosofia da atualidade, perdeu o fôlego ao ler os originais de Giannotti. Consta que chegou a sugerir ao amigo algumas mudanças no livro, a fim de torná-lo mais palatável até mesmo para os profissionais do ramo.
Essa dificuldade de seu pensamento não é desconhecida do próprio Giannotti, que às vezes parece ter mesmo gosto em cultivá-la. No final do ano passado, ao ser abordado a respeito do novo livro pelo filósofo Paulo Arantes, autor do importante livro sobre a "formação da cultura filosófica uspiana", da qual Giannotti é uma das peças centrais, o autor saiu-se mais ou menos assim: "Espera mais um pouco até eu terminar. O livro está muito difícil e você não vai entender".
Anedota ou não, não deixa de ser surpreendente e louvável que alguém consagrado em sua atividade profissional, como é Giannotti, tenha se debruçado durante mais de uma década na árdua tarefa de desmontar o pensamento do filósofo austríaco. Se isso faz parte de suas "obsessões lógicas", como ele mesmo não cansa de repetir, deve-se entender essa obsessão dentro um projeto intelectual mais amplo e complexo do que aquele a que se dedicam os que dizem apenas "mexer com filosofia" (eufemismo mais comum usado pelos professores da USP que preferem se definir como historiadores da filosofia).
Como no livro anterior, não se trata simplesmente de explicar a obra de um grande filósofo. Um dos erros mais comuns quando "Trabalho e Reflexão" veio a público foi considerá-lo mais uma análise, embora muito engenhosa, da obra de Karl Marx. Corre-se o risco agora de repetir o mesmo equívoco em relação a Wittgenstein. Nos dois casos, Giannotti está fazendo filosofia, o que pode parecer óbvio, mas não é.
Em seu livro sobre "Um Departamento Francês de Ultramar", Paulo Arantes procura mostrar como a liberação das vocações filosóficas no Brasil é algo recentíssimo e só foi possível graças a um período prévio de formação que teve nos anos 60 a sua hora da verdade.
Como escreve o próprio Arantes, o discurso predominante entre os "maŒtres à penser" no período heróico do Departamento de Filosofia da rua Maria Antonia era mais ou menos o seguinte: "lembremo-nos todos que não somos filósofos, ou melhor, se algum dia a filosofia der o ar de sua graça, será por acréscimo e ao término de um infindável aprendizado de técnicas intelectuais criteriosamente importadas. (Pelo menos era assim que se falava aos mais moços nos primeiros anos dos 60)".
Eis que a filosofia deu finalmente o ar da graça pelas mãos de Giannotti. Neste sentido, e sem entrar no mérito do alcance dessa aventura especulativa que já atravessa décadas (isso fica para os especialistas), talvez não seja exagerado afirmar, sem nenhuma ironia, que pertence a Giannotti o justo título de primeiro filósofo brasileiro. Mas, se for mesmo verdade que estamos diante do momento inaugural da filosofia brasileira, também parece evidente que alguma coisa mudou na cabeça do autor entre "Trabalho e Reflexão" e este "Apresentação do Mundo". Mas o quê?
Segundo Giannotti, não muita coisa. Ele próprio vem dizendo seguidas vezes aos mais curiosos que seu livro sobre Wittgenstein não é nada mais do que uma nova versão, revista e devidamente consertada, do primeiro capítulo de "Trabalho e Reflexão", intitulado "Imperativos da Ilusão".
Para Paulo Arantes, no entanto, como fica explícito na entrevista que o Mais! publica nesta edição, a guinada de Giannotti é muito mais profunda do que ele mesmo pode admitir. Nada menos do que uma mudança de paradigma que, entre outras coisas, colocaria nosso primeiro filósofo em franca sintonia com a voga das filosofias da linguagem ora em curso nos grandes centros de filosofia do Primeiro Mundo.
Simplificando ao extremo, se em "Trabalho e Reflexão" tratava-se de buscar uma "ontologia do social" centrada na categoria do trabalho (paradigma da produção), agora essa mesma ontologia será perseguida na cola da noção wittgensteiniana de "jogos de linguagem" (paradigma pragmático-linguístico).
O leitor iniciado em filosofia não deixará de reconhecer o paralelo entre a empreitada de Giannotti e o projeto desenvolvido por aquele que é considerado o maior filósofo vivo, o alemão Juergen Habermas.
Não é à toa que o autor da "Teoria da Ação Comunicativa" (1981) seja o único pensador da chamada Escola de Frankfurt (ou pós-frankfurtiano) que Giannotti trata de levar a sério, ainda que lhe faça severas restrições. Aos olhos de Giannotti, Theodor Adorno, Max Horkheimer e demais frankfurtianos não passam de moralistas e estão "aquém das exigências lógicas que uma reflexão contemporânea deve cumprir", como ele mesmo afirma.
Na entrevista que segue, o leitor notará que, enquanto muitos de seus colegas trocaram o exercício solitário do pensamento por um cargo no governo de Fernando Henrique Cardoso, Giannotti continua especulando a todo vapor. Além da obra sobre Wittgenstein, ele pretende lançar ainda este ano mais três livros. Um deles será composto de três textos que tratam da moral.
Outro vai reunir ensaios mais conjunturais, no estilo de sua "Filosofia Miúda" (1985). O último, do qual ele atualmente se ocupa, é um longo ensaio sobre a dialética de Hegel e Marx. Será, quem sabe, uma boa oportunidade para responder aos que, como Paulo Arantes, acreditam que Giannotti desesperou de Marx para cair na tentação de uma filosofia pragmática que, assim como a de Habermas, tão bem exprime o horizonte reformista e brando da social-democracia.

Folha - Quase 30 anos depois de lançar seu livro sobre a dialética do jovem Marx e 12 anos depois de "Trabalho e Reflexão", qual o significado deste novo livro?
Giannotti -A publicação de um novo livro sempre tem gosto de aventura, de exposição a um público invisível. Mas desde logo cabe salientar que hoje em dia a conjuntura é muito diferente. Quando comecei a publicar tinha a sensação de que estava lançando uma pedra num poço sem fundo, pois não tinha retorno algum. Só mais tarde percebi que o estudioso de filosofia, no início dos anos 60, estava construindo seu próprio público. O livro era antes de tudo um machado para abrir uma picada pela qual outros viriam a se enveredar, formando-se ao longo do caminho.
Agora, este caminho já foi aberto. Tenho salientado que existe uma produção média tanto em filosofia como em ciências sociais, de sorte que a tarefa é se infiltrar nela, abrir uma cunha para que os problemas possam ser repensados duma nova perspectiva, mais rente àquilo que estamos experimentando no momento.
Folha - No início dos anos 60, quando o senhor participou, ao lado de intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz, do hoje célebre "Seminário do Capital", a impressão era de que estavam capinando em terreno virgem? Aquilo era algo como a "descoberta do mundo"?
Giannotti - Não, seria provincianismo imaginarmos que estávamos começando a produzir cultura no Brasil. O fato novo foi a criação da USP, que nos obrigava a ter uma relação muito diferente com aquilo que Cruz Costa chamou "as vagas de idéias" que estávamos acostumados a receber. Ao sermos treinados de acordo com os moldes franceses, estávamos adquirindo instrumentos para pensar por conta própria, mas nossas experiências ainda vinham formatadas de acordo com os modelos importados.
Daí a necessidade de um constante diálogo com as modas, assim como a necessidade de um constante ajustamento aos temas brasileiros. No caso particular da filosofia, fomos sucessivamente bachelardianos, fenomenólogos, marxistas e não é à toa que agora estou saindo de um mergulho em Wittgenstein. É como se fosse obrigado a falar línguas diferentes, para ser entendido pelo ambiente escrito, mas sempre puxando a brasa para minha sardinha. E meu tema fundamental sempre foi a pergunta pela possibilidade do conhecimento e como isto se enraíza num mundo previamente dado.
Folha - A pergunta pela possibilidade do conhecimento é de origem kantiana. Não é isso?
Giannotti - Sim, kantiano, mas passando pelo viés da fenomenologia, pela necessidade de pensar este enraizamento no mundo como uma forma de deitar raízes no cotidiano, numa prática que logo se revelou muito mais complicada do que o trato com o arado ou com o lápis, e muito mais perto do uso do telefone, dos instrumentos tecnológicos, em suma, de uma segunda natureza que se abre para nós como uma forma de linguagem da qual é preciso dominar os signos e à qual temos acesso pelo ato de compra e venda. Pensar nosso enraizamento no mundo da vida também é pensar nossa relação com o capital.
Folha - Se é assim, como explicar essa surpreendente e longa temporada em companhia de Wittgenstein? Para quem estava preocupado em entender o movimento do capital, este não é um desfecho no mínimo inusitado?
Giannotti - Convém lembrar que tanto meu diálogo com a fenomenologia como com o marxismo foi feito do ponto de vista da lógica contemporânea. Foi por pressa que minha tese de doutoramento tratou de Stuart Mill. A intenção primeira era escrever um texto sobre a lógica de Husserl, nem tanto para fuçar sua interpretação da lógica, mas sobretudo para saber como as regras da lógica, aquelas que parecem mais distantes do mundo, deitam raízes nele.
Como logo percebi que a tarefa era enorme e como havia pressão para terminar o doutoramento, acabei tomando Stuart Mill como saco de pancadas para salientar tanto o caráter normativo das proposições de essência quanto seus vínculos com o cotidiano. E o psicologismo somente dava conta deste seu segundo aspecto.
Deixe-me fazer um parêntese. Nos anos 50, fazer filosofia não era uma profissão. Escrever, em geral, era um ato vagabundo. Mas o simples fato de estarmos inseridos numa universidade que era, mesmo no caso da filosofia, profissionalizante, nos obrigava a ser profissionais, pessoas de muita competência técnica em contraste com o ensaísmo dominante, mas que necessitávamos preencher esse status profissional com uma reflexão nômade. O tão falado seminário sobre "O Capital" resolvia este dilema, pois, de um lado, nos obrigava a uma leitura técnica da obra e, de outro, permitia -graças ao seu caráter interdisciplinar- pular de galho em galho, da filosofia para a economia, da história para a política, sempre tendo como pano de fundo o que estava se passando no Brasil.
E se houve uma divisão de trabalho, se uns publicaram livros de filosofia da lógica e outros de economia e de história, é porque naquele momento trabalhávamos em grupo. Parece-me falso afirmar, assim, que o marxismo dessa época era especialista na leitura de texto, deixando a análise da realidade capitalista na sombra. Pelo contrário, um livro se imbricava noutro.
Folha - Alguns veteranos deste seminário, ao mencionar a sua influência decisiva nos rumos da leitura da obra máxima de Marx, que foi submetida a uma análise lógica muito rigorosa, não deixam de dizer que o senhor exercia sobre o grupo uma certa tirania metodológica, que sem dúvida rendeu bons frutos.
Giannotti - Não creio nessa tirania metodológica. Minha colaboração para o grupo, creio eu, veio de uma obsessão pelo rigor. Compare-se a produção dos paulistas com aquela do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Se de fato os isebianos tiveram uma repercussão que não tivemos, se de fato eles forjaram uma ideologia racionalista nacional, tivemos a virtude de preparar novas gerações dotadas de instrumentos mais refinados para pensar a realidade nacional.
(continua)

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