São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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História da Aids encurtou

PAULO FERNANDO SILVESTRE JR.
DA REPORTAGEM LOCAL

História da Aids encurtou
Na semana passada, um grupo de cientistas do respeitado Centro de Pesquisa em Aids Aaron Diamond, da Universidade de Nova York (EUA), descobriu que um homem morto em 1959 e tido como o "paciente zero" -primeiro caso comprovado- de Aids do mundo nunca teve a doença.
Com isso, a primeira data em que o vírus foi "visto" passa a ser 1976, em um africano.
Mais do que simples questão de datas, a novidade traz implicações sobre a origem do vírus e da própria doença.
Além disso, a revelação lança suspeitas de fraude sobre a pesquisa original que identificou o "paciente zero de 1959".
Esse paciente era David Carr, um aprendiz de tipógrafo da cidade de Manchester (Reino Unido), que morreu vítima de uma doença misteriosa.
Carr era membro da Marinha Real Britânica e por isso havia viajado por vários países. Especulava-se que o vírus poderia ter sido trazido de algum dos países visitados por Carr.
Em casos de doenças incomuns com a dele, é de praxe guardar amostras de tecidos de órgãos para eventuais estudos posteriores.
Como sua doença era particularmente estranha, os cientistas que tentaram (sem sucesso) desvendá-la na época guardaram uma quantidade ainda maior de amostras de tecidos de diversos órgãos.
Esse caso permaneceu um mistério até a década de 80, quando alguns médicos começaram a relacionar uma nova doença de seus pacientes -Aids- com o caso do homem de Manchester.
Isso fez com que um grupo de pesquisadores da Universidade de Manchester analisasse as amostras guardadas há 30 anos.
Dispondo de amostras dos principais órgãos de Carr, os cientistas puderam realizar uma pesquisa extensiva.
Em 1990, eles publicaram um artigo na revista "The Lancet", dizendo que a doença que matou o homem de Manchester era realmente Aids.
A primeira consequência disso era que o HIV não teria vindo, portanto, do SIV - vírus equivalente.
Agora, com a revelação de que Carr não tinha Aids, essa hipótese volta a ser possível, já que o fator limitante para sua aceitação deixou de existir.
"Acho que há muito pouca dúvida de que o HIV se originou de uma mutação do SIV", disse à Folha Adauto Castelo Filho, professor-adjunto da Escola Paulista de Medicina.
Além da falha no diagnóstico, a equipe na Universidade de Manchester corre o risco de ser acusada de fraude científica, pois o material genético que "determinou" o paciente zero não seria de Carr.
A revelação veio de Aaron Diamond, depois de que seu diretor, David Ho, desconfiou da "assinatura genética" do HIV presente no material enviado em 1992 por Gerald Corbitt, da Universidade de Manchester.
Procurado pela Folha, Ho recusou-se a dar entrevista.
O HIV encontrado pela equipe pertencia à principal linhagem do vírus na época em que o estudo de Manchester foi feito.
Isso invalida a possibilidade de que o material fosse de 1959, pois essa variação não poderia ter existido naquele ano, dada a alta taxa de mutação do HIV.
Castelo descarta completamente a possibilidade de que o vírus encontrado pela equipe de Ho fosse uma "aberração" que justificasse tal semelhança.
Ho decidiu comprovar suas suspeitas pedindo outro conjunto de tecidos de Carr para análises.
O material foi enviado em 1994 por George Williams, atualmente aposentado. Ele garante que não houve troca acidental de material.
Confirmando as suposições de Ho, não foi encontrado nenhum indício de HIV nesses tecidos.
Mais do que isso, ele descobriu que as proteínas "HLA" -espécie de senha que as células usam para conversar com o sistema imunológico, próprias de cada indivíduo- não se relacionavam com o material previamente enviado, o que implica que eles não poderiam ser da mesma pessoa.
Ou as amostras do tecido de Carr foram acidentalmente confundidas com outras na Universidade de Manchester -o que parece pouco provável-, ou foram deliberadamente trocadas.
Não se sabe exatamente o que alguém ganharia com esses tipo de fraude, ma é certo que a credibilidade da pesquisa de Manchester está irrefutavelmente abalada.

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