São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Lei zapatista deu dignidade a Chiapas

SUBCOMANDANTE MARCOS

Aos homens e mulheres que, em línguas e caminhos diferentes, crêem num futuro mais humano e lutam para consegui-lo hoje.
Irmãos: há neste planeta chamado Terra, e no continente que chamam de americano, um país cujo rosto parece ter recebido uma grande mordida, pelo lado oriental, e que pelo lado ocidental firma um braço no Pacífico para que os furacões não o levem para longe de sua história. Sua história é uma longa batalha entre seu desejo de ser ele próprio e o desejo de estrangeiros de arrebatá-lo para outra bandeira. Esse país é o nosso.
Nós, nosso sangue, então na voz de nossos mais distantes avós, já caminhávamos quando seu nome ainda não era esse. Mas em pouco tempo, nesta luta de sempre entre ser e não ser, entre estar e ir, entre ontem e amanhã, chegou ao pensamento dos nossos, agora com sangue dos dois ramos, que se chamasse México a esse pedaço de terra, água, céu e sonho que tivemos porque nos fora dado de presente por nossos antepassados.
Então fomos outros e mais, e então cabal foi a história que assim nos fez, porque nome tivemos todos os que assim nascíamos. E mexicanos nos chamamos e nos chamaram. Então a história continuou, dando registros e dores. Nascemos entre sangue e pólvora, entre sangue e pólvora crescemos.
De tanto em tanto vinha o poderoso de outras terras a querer nos roubar o amanhã. Por isso se escreveu, no canto guerreiro que nos une: "Mas se ousar um estrangeiro inimigo profanar com seu pé teu solo, pensa, ó pátria querida, que o céu um soldado em cada filho te deu. Por isso lutamos ontem. Com bandeiras e línguas diferentes veio o estrangeiro a nos conquistar. Veio e se foi.
Continuamos sendo mexicanos porque não nos sentíamos à vontade com outro nome, nem com caminhar sob outra bandeira que não aquela que ostenta uma águia devorando uma serpente, sobre fundo branco, e com verde e vermelho aos lados. E assim passamos. Nós, os habitantes primeiros destas terras, os indígenas, fomos ficando esquecidos num canto; o resto começou a fazer-se grande e forte, mas só tínhamos nossa história para defender-nos e a ela nos agarramos para não morrer.
E chegou essa parte da história que parece piada, porque um único país, o país do dinheiro, passou por cima de todas as bandeiras. E eles disseram "globalização, e soubemos que era assim que chamavam a essa ordem absurda em que dinheiro é a única pátria à qual se serve e as fronteiras se diluem, não pela fraternidade, mas pelo sangramento que engorda poderosos sem nacionalidade.
A mentira se fez moeda nacional e em nosso país teceu, sobre o pesadelo dos maias, um sonho de bonança e prosperidade para os menos. Corrupção e falsidade foram os principais produtos que nossa pátria exportava a outras nações. Sendo pobres, vestimos de riqueza nossas carências e, de tanta e tão grande a mentira, acabamos por acreditar que era verdade.
Nos preparamos para os grandes fóruns internacionais e a pobreza foi declarada, por vontade governamental, uma invenção que se desvanecia diante do desenvolvimento que gritavam as cifras econômicas. Nós? A nós nos esqueceram, e a história já não nos bastava para morrer assim, simplesmente, esquecidos e humilhados.
Porque morrer não dói, o que dói é o esquecimento. Descobrimos então que não existíamos mais, que os governos nos haviam esquecido na euforia de cifras e taxas de crescimento. Um país que esquece a si mesmo é um país triste; um país que esquece seu passado não pode ter futuro. E então nós nos agarramos às armas e nos metemos nas cidades onde éramos animais. E fomos e dissemos ao poderoso: "Aqui estamos! e gritamos ao país inteiro: "Aqui estamos! e gritamos ao mundo inteiro: "Aqui estamos!.
E vejam como são as coisas, porque para que nos vissem, cobrimos nossos rostos; para que nos dessem um nome, negamos nosso nome; apostamos no presente para ter um futuro; e para viver... morremos. E então vieram os aviões e os helicópteros e os tanques e as bombas e as balas e a morte e nós regressamos a nossas montanhas e até ali a morte nos perseguiu e muita gente de muitas partes disse "Falem, e os poderosos disseram "Falemos, e nós dissemos "Bem, então falemos.
E falamos e lhes dissemos o que queríamos e eles não entendiam muito, e nós lhes repetíamos que queríamos democracia, liberdade e justiça e eles faziam cara de não entender e revisavam seus planos macroeconômicos e todas suas anotações de neoliberalismo e não encontravam essas palavras em nenhum lugar -e "Não entendemos, nos diziam, e nos ofereciam um canto mais bonito no museu da história e uma morte mais a longo prazo e uma corrente de ouro para amarrar a dignidade.
E nós, para que entendessem o que queríamos, começamos a fazer em nossas terras o que queríamos. Nos organizamos com a concordância da maioria e nos pusemos a ver como era isso de viver com democracia, com liberdade e com justiça, e foi isso que aconteceu: durante um ano governou nas montanhas do sudeste mexicano a lei dos zapatistas e os senhores não o sabem nem vão contá-lo, mas os zapatistas somos nós.
Ou seja, nós que não temos rosto nem nome nem passado e somos indígenas na maioria, mas ultimamente já estão entrando mais irmãos de outras terras e outras raças. Todos nós somos mexicanos.
Quando nós governamos essas terras, fizemos assim: quando nós governamos o alcoolismo baixou para zero, e é que as mulheres daqui ficaram bravas e disseram que a bebida só serve para que o homem bata nas mulheres e nas crianças e faça barbaridades, e então deram a ordem de que nada de bebida -e portanto nada de bebida e não deixaremos a bebida passar -e os mais beneficiados eram as crianças e as mulheres e os mais prejudicados eram os comerciantes e os do governo.
E, com o apoio de algumas que se chamam "organizações não-governamentais, nacionais e estrangeiras, se realizaram campanhas de saúde e se elevou a expectativa de vida da população civil, embora o desafio ao governo tenha reduzido a vida de nós, combatentes. E as mulheres começaram a ver que se cumpriam suas leis que impuseram a nós, os homens. Um terço de nossa força combatente é de mulheres. Elas são muito corajosas e estão armadas e nos "convenceram a aceitar suas leis e também participam da direção civil e militar de nossa luta e nós não dissemos nada -dizer o quê?
E também se proibiu a derrubada de árvores e se fizeram leis para proteger as florestas e se proibiu a caça de animais selvagens, mesmo que sejam do governo, e se proibiu o cultivo, consumo e tráfico de drogas e essas proibições se cumpriram. E a taxa de mortalidade infantil se fez pequenina, como são as próprias crianças. E as leis zapatistas se aplicaram por igual, sem importar a posição social ou o nível de renda. E todas as decisões maiores, "estratégicas, de nossa luta, tomamos pelo que chamam de "referendo e de "plebiscito.
E acabamos com a prostituição e desapareceu o desemprego e também a mendicância. E as crianças conheceram os doces e os brinquedos. E cometemos muitos erros e falhas. E também fizemos o que nenhum governo do mundo, de qualquer filiação política, é capaz de fazer honestamente e que é reconhecer os erros e tomar as medidas para remediá-los.
E nisso estávamos aprendendo, quando chegaram os tanques e os helicópteros e os aviões e muitos milhares de soldados, e diziam que vinham defender a soberania nacional e nós lhes dissemos que esta a estavam violando nos Iueséi (USA, os EUA), e não em Chiapas, e que não se defende a soberania atropelando a dignidade rebelde dos indígenas de Chiapas.
E eles não nos escutavam porque o ruído de suas máquinas de guerra os deixou surdos e eles vinham da parte do governo, e para o governo a traição é a escada pela qual se sobe ao poder e para nós a lealdade é o plano igualitário que desejamos para todos. E sua legalidade de governo veio montada sobre baionetas e nossa legalidade estava no consenso e na razão e nós queremos convencer e o governo quer vencer e nós cremos que nenhuma lei que tenha que recorrer ao uso de armas para se fazer cumprir por todo um povo pode chamar-se lei e é apenas uma arbitrariedade, por mais que se cubra de roupagens legalóides, e aquele que comanda uma lei acompanhada da força das armas é um ditador, mesmo que diga que a maioria o elegeu.
E nos expulsaram de nossas terras. E com os tanques de guerra chegou sua lei de governo e se foi a lei dos zapatistas. E por trás dos tanques de guerra do governo vieram outra vez a prostituição, a bebida, o roubo, as drogas, a destruição, a morte, a corrupção, a doença e a pobreza. E vieram pessoas do governo e disseram que se havia restabelecido a legalidade nas terras de Chiapas, e vieram com coletes à prova de balas e com tanques de guerra e só passaram alguns minutos e se cansaram de fazer seus discursos diante de frangos e galinhas e porcos e cachorros e vacas e cavalos e um gato que estava perdido.
E se fez o governo e o melhor os senhores já sabem, porque muitos jornalistas o viram e o publicaram. E essa é a legalidade que manda agora em nossas terras. E assim foi a guerra pela "legalidade e a "soberania nacional que travou o governo contra os índios de Chiapas. O governo também trava guerra contra os demais mexicanos, mas em vez de tanques e aviões lhes trouxe um plano econômico que vai matá-los do mesmo jeito, só que mais lentamente...
E agora que me recordo, estou escrevendo isto no dia 17 de março, que é dia de São Patrício e naquele México que lutou, no século passado, contra o império das listas e das estrelas opacas, houve um grupo de soldados de diferentes nacionalidades que lutou ao lado dos mexicanos e esse grupo se chamava Batalhão São Patrício e por isso os companheiros me disseram: "Aproveite para escrever aos irmãos de outros países e agradeça porque detiveram a guerra, e acho que é a manha deles para irem dançar e para que não se os critiquem, porque o avião do governo anda por aí e é puro dançar que querem esses companheiros que com guerra e tudo estão mandando ver na marimba.
E então eu escrevo a vocês em nome de todos os meus companheiros e companheiros, porque, assim como no Batalhão São Patrício, nós já vimos claramente que há estrangeiros que amam mais o México do que alguns nacionais que hoje estão no governo e amanhã estarão na cadeia ou no exílio físico, porque do coração já estão fora, porque querem outra bandeira que não é a sua e outro pensamento que não é o de seus iguais.
E nós soubemos que houve passeatas e manifestações e cartas e poemas e canções e filmes e outras coisas para que não houvesse guerra em Chiapas, que é a parte do México onde nos coube viver e morrer. E soubemos que assim aconteceu e que "Não à guerra!, disseram na Espanha e na França e na Itália e na Alemanha e na Rússia e na Inglaterra e no Japão e na Coréia e no Canadá e nos Estados Unidos e na Argentina e no Uruguai e no Chile e na Venezuela e no Brasil -e em outras partes não o disseram, mas pensaram.
E então vimos que há pessoas boas em muitas partes do mundo e que essas pessoas vivem mais perto do México do que os que vivem em Los Piños, que é assim que se chama a casa onde vive o governo deste país.
Nossa lei fez florescer livros, remédios, risadas, doces e brinquedos. A lei deles, a dos poderosos, chegou sem argumento algum que não o da força e destruiu bibliotecas, clínicas e hospitais, e trouxe tristeza e amargo caminhar para nossa gente. E nós pensamos que uma legalidade que destrói o conhecimento, a saúde e a alegria é uma legalidade muito pequena para homens e mulheres tão grandes, e que nossa lei é melhor, infinitamente melhor, que a lei desses senhores que, com vocação estrangeira, dizem que nos governam.
E nós queríamos dizer a vocês, a todos, obrigado. E que se tivéssemos uma flor, a daríamos de presente e como não temos flores suficientes para cada um ou para cada uma, uma flor basta para que a repartam e guardem um pedacinho cada um e quando estejam velhinhos ou velhinhas mostrem às crianças e aos jovens de seu país que "lutei pelo México no final do século 20, aqui mesmo estava com eles e sei que queriam o que querem todos os seres humanos que não se esqueceram de que são humanos e do que é a democracia, a liberdade e a justiça, e não conheci o rosto deles e sim seu coração, que é igual ao nosso.
E, quando o México for livre (o que não quer dizer que seja feliz ou perfeito, mas apenas livre, ou seja, que possa escolher livremente seu caminho e seus erros e seus acertos), então um pedacinho de vocês, esse que está na altura do peito e que, apesar das implicações políticas ou precisamente por causa delas, está um pouco puxado para a esquerda, será também México e essas seis letras significarão dignidade e então a flor será para todos ou não será.
E agora passa pela minha cabeça que com esta carta você pode fazer uma flor de papel e colocá-la no cabelo ou na casa do botão da camisa, conforme o caso, e sair a dançar com seu encantador enfeite. E eu já vou, porque lá vem outra vez o avião de todos os desvelos e tenho que apagar a vela, mas não a esperança. Essa, nem morto.
Vale. Saudações e a flor prometida: talo verde, branca flor, folhas vermelhas, e não se preocupem com a serpente, aquilo que vem batendo as asas é uma águia que se encarregará dela, você verá...
Tradução de Clara Allain

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