São Paulo, domingo, 2 de abril de 1995
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Bases para um novo Estado

JOSÉ SERRA

A maioria dos países já avançou bastante na redefinição das funções do Estado em suas economias. No Brasil, porém, o tema ainda desperta grandes paixões e a discussão sobre o papel das empresas estatais promete gerar uma das maiores controvérsias na reforma da Constituição Federal que está prestes a se iniciar.
Sendo assim, convém recapitular sumariamente algumas opiniões que venho repisando em artigos e palestras nos últimos anos:
a) O papel do Estado na economia tem um sentido histórico, ou seja, muda à medida que as circunstâncias se modificam. O Estado brasileiro cumpriu um papel importantíssimo no desenvolvimento do país, entrando em áreas nas quais a iniciativa privada não podia ou não queria ingressar e apoiando de forma decisiva a implantação de um poderoso parque industrial.
Hoje, entretanto, se o Estado se retirar dessas áreas, elas não só não irão desaparecer, como também poderão ser fortalecidas, ao se tornar mais ágeis, livres dos condicionamentos burocráticos comuns à tutela estatal.
b) A crise das empresas estatais foi deflagrada pelo achatamento real dos preços dos seus produtos e pelo peso da dívida externa assumida nos anos 70 e foi agravada pelo choque dos juros internacionais no final da década de 70/início da de 80 e pelo corte posterior do financiamento externo. Independentemente das suas origens, porém, a crise propagou-se, aprofundou-se e ganhou vida própria.
c) A principal solução encontrada no Brasil para a crise das empresas estatais, da mesma forma que em outros países, foi a privatização, decisão rigorosamente acertada, por quatro motivos.
Primeiro, para reduzir a dívida pública, permitindo assim atenuar a pressão do Estado sobre o mercado de crédito e contribuindo para a queda da taxa de juros, desafogando também a despesa financeira do governo.
Segundo, para economizar a capacidade gerencial do Estado, descentralizando e aperfeiçoando a gestão microeconômica em setores significativos da produção, de modo a concentrar a atenção estatal em áreas tipicamente provedoras de bens públicos, como serviços básicos, saúde, educação, segurança, ciência e tecnologia, meio ambiente e a coordenação macroeconômica com vistas à estabilidade de preços e ao crescimento sustentado.
Terceiro, para contribuir no esforço de equilíbrio das contas públicas e para evitar novas pressões sobre os gastos públicos no futuro, melhorando assim a situação fiscal.
E, "last but not least", para canalizar recursos destinados à realização de investimento que o Estado não pode financiar devido às suas restrições orçamentárias, mas que são indispensáveis para a retomada do desenvolvimento econômico.
d) No Brasil, a fase mais intensa da privatização, após as tímidas privatizações da década de 80, começou no final de 1991 e permitiu que em pouco mais de três anos fossem privatizadas 33 empresas, rendendo diretamente o equivalente a US$ 8,6 bilhões em arrecadação e, indiretamente, outros US$ 3,2 bilhões de dívidas transferidas aos novos proprietários, somando um total de quase US$ 12 bilhões de redução da dívida pública.
A área estatal da siderurgia foi totalmente privatizada e o mesmo deverá ocorrer nos próximos meses com o setor petroquímico, além de outras áreas menores cuja privatização já foi completada, como no setor de fertilizantes.
A venda de ativos deve prosseguir agora avançando nas áreas elétrica e de transportes e chegando ao setor financeiro, às telecomunicações e ao petróleo. Neste caso, não se trata de vender a Petrobrás, mas de permitir que ela se associe com outras empresas, como fazem tantas outras empresas no mundo.
Nossos vizinhos Colômbia e Venezuela, dois dos maiores produtores de petróleo da América Latina, têm trilhado esse caminho -chamado de "asociaciones estratégicas"- com grande êxito, e têm atraído maciços investimentos estrangeiros.
e) A crítica à privatização dos setores que afetam de forma mais direta a população -como é o caso da área de eletricidade- parte do falso pressuposto de que entre a privatização pura e simples -que corre o risco de trocar um monopólio estatal por outro privado, com prejuízo para o consumidor- e a preservação do "status quo" não existe mais nada.
Essa polarização, porém, não corresponde à realidade, pois em geral os países que privatizam serviços como os de energia elétrica e telecomunicações, o fazem depois de estabelecida uma Comissão de Regulação que, estabelecendo regras do jogo claras e em defesa do consumidor, concilia os objetivos privados de maximização da lucratividade com os objetivos públicos referentes ao preço a ser cobrado, à qualidade dos serviços e à dimensão do mercado a ser abastecido.
f) Em um país com uma renda por habitante modesta e com uma elevada proporção de pobres e miseráveis, não poderá deixar de haver (e de ser consideravelmente melhorado) um sistema público de saúde, educação e previdência básica.
Também terá de ser mantida uma legislação básica de proteção ao trabalho, ao lado da plena autonomia sindical e da livre negociação de contratos coletivos entre empregados e empregadores e da reformulação do papel normativo da Justiça do Trabalho.
Não é realista supor que em uma economia como a brasileira, no caso desta ser completamente desregulamentada, o mercado, por si só, dê conta de eliminar a pobreza.
g) Nas condições atuais, o Estado brasileiro pode ser forte, sem que precise ser autoritário, nem estar presente de modo direto e abrangente no setor produtivo. É falsa, portanto, a querela entre os que preconizam um Estado mínimo como no século passado e os que defendem um Estado intervencionista como nos anos 40 e 50, apegados a tradições populistas e corporativistas ultrapassadas.
O Brasil precisa de um Estado democrático redesenhado de acordo com as necessidades atuais de seu desenvolvimento econômico e de liberdade e justiça social.

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