São Paulo, quarta-feira, 5 de abril de 1995
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Spike Lee volta ao cotidiano em 'Crooklyn'

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Crooklyn - Uma Família de Pernas pro Ar" traz todas as qualidades da marca Spike Lee: a força da música negra, a questão das drogas, as aparições do próprio diretor e o interminável bate-boca entre várias etnias.
E, como sempre, o cineasta parece combinar uma visão contemplativa, a comunidade vista de uma das escadas ou janelas dos pequenos edifícios, com momentos de ação, quando a vida se desdobra em círculos intermináveis de conversas ou se prolonga em papos-passeios pelas ruas.
O conflito racial está na base do cinema de Spike Lee. No entanto, ele tem transitado entre o registro de uma classe média negra emergente, visível tanto em "Faça a Coisa Certa" (1989) quanto em "Febre na Selva" (1991), e o destino trágico do herói, retratado em "Mais e Melhores Blues" (1990) e "Malcolm X" (1992).
Visto por outro ângulo, é como se a trajetória cinematográfica de Spike Lee caminhasse para uma ambição desmesurada. Esta lógica estaria refletida na comparação entre o personagem do entregador de pizza de "Faça a Coisa Certa" e o líder negro de "Malcolm X".
As diferenças são reveladoras: custos baixos x estouro de orçamento, forma breve x longa duração, a pequena comunidade de um bairro x a raça negra no mundo.
Diante desse quadro, "Crooklyn" foi considerada uma obra menor de Spike Lee. Não é. A atmosfera familiar, quase doméstica, que se projeta ao longo de todo o filme deve ser encarada como uma volta ao registro da simplicidade, aos limites de um bairro, de uma família.
Ao revisitar sua infância no Brooklyn, Spike Lee deixou que os laços familiares se infiltrassem na própria concepção do filme, já que os episódios de sua vida foram retratados segundo a ótica de sua irmã Joie Susannah Lee, uma das co-roteiristas do filme.
O olhar feminino é uma das novidades de "Crooklyn". Depois da memorável cena em "Febre na Selva" na qual as mulheres conversam demoradamente na sala, falando livremente sobre diversos assuntos, Spike Lee não retornou ao universo feminino. A liberdade estilística conquistada naquela cena foi transposta com extrema felicidade para este seu novo trabalho.
Outro ponto a favor de "Crooklyn" é o equilíbrio que se estabelece entre o discurso edificante da mãe (Alfre Woodard) e a delicadeza psicológica da filha (Zelda Harris).
A cena de abertura beira a perfeição: os irmãos correndo em torno do quarteirão delimitam o território lírico da história. Na condição de um dos poucos artesãos da indústria cinematográfica, Spike Lee sabe trançar a vida de seus personagens, expondo, passo a passo, a maquinação da história.
"Crooklyn" é uma correção de rota, do mitológico raio X de Malcolm ao olhar microscópico da pequena Troy, a filha menor da família. Esta passagem do épico para o lírico, da formação ideológica de um líder para a educação sentimental de uma menina, é saudável. O fato de não ter sido lançado no cinema aqui no Brasil demonstra que o filme foi visto como uma obra menor.
"Crooklyn" é uma grande obra em tom menor, através da qual Spike Lee volta a ser um observador agudo da vida cotidiana.

Vídeo: Crooklin - Uma Família de Pernas para o Ar
Direção: Spike Lee
Elenco: Alfre Woodard, Zelda Harris
Distribuição: CIC Vídeo (tel. 011/816-7391)

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