São Paulo, sábado, 8 de abril de 1995
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Um espião na Antártida

JOSUÉ MACHADO

O jornalista Wilson Palhares guarda duas terríveis recordações da expedição de que participou à Antártida há mais de dez anos: o frio de - 40.oC, que lhe encolhia até o cérebro, e as músicas de Roberto Carlos e Chitãozinho e Chororó que foi obrigado a ouvir durante os meses da gélida aventura: o comandante do barco adorava tais músicas e tinha todas as fitas das duas entidades. Para se distrair, Palhares punha algodão nos ouvidos e leu "Os Lusíadas" até decorar os dez cantos. Acabou gostando. É perito em Camões.
Por isso foi com um sorriso frio, talvez gelado, que leu a informação de que os esquimós são nativos da Antártica. Na verdade ele leu um texto descritivo de um dos nove filmes comerciais do novo guaraná Brahma, publicado nesta Folha. Os filmes devem ir ao ar em São Paulo a partir do dia 15 deste mês.
"Abre com um jovem repórter encapotado no meio de uma geleira. Passa um esquimó. O rapaz oferece um copo do novo guaraná Brahma ao nativo. 'Não gostei', ele responde. 'Na Antártica ninguém gostou do novo Guaraná Brahma', termina o repórter. E o slogan: 'Esperimente o novo'."
"Esquimó", "nativo" e "Antártica" são palavras utilizadas na descrição do filme. Serão do repórter ou dos autores do comercial? (Comercial é o nome que os publicitários dão aos anúncios animados exibidos - veiculados, dizem eles - na TV, como sabemos todos.)
Muito gracioso há de ser o comercial. Muito mesmo. Só que na Antártida - sim, Antártida, e não "Antártica" -, o continente que fica no sul do nosso mundo triste, lá onde se aloja impávido o pólo Sul, na Antártida não há nenhum nativo a não ser acarinos, rotíferos microscópicos, insetos minúsculos sem asas, líquens, musgos e fungos. Fora esses, não se conhecem outros seres vivos capazes de sobreviver por meios naturais no continente, chamado de continente antártico, com seus 14 milhões de quilômetros quadrados cobertos por uma camada de gelo de 1.800 a 4.200 metros de espessura. Lá a temperatura chega a - 60°. C, bem arejada por ventos de até 160 km/h. Só nas costas e águas costeiras circulam pingüins, gaivotas, baleias e focas. E essas alimárias não bebem guaraná nem que o Legislativo e o Judiciário brasileiros passem a trabalhar cinco dias por semana. Podem bebê-lo os integrantes de bases científicas e militares convenientemente aquecidas para que as criaturas não se transformem em picolés; são pessoas que passam algum tempo lá de castigo e voltam para casa. Dizem que nunca mais tomam nada gelado.
Esse continente maior do que a Europa, portanto, se chama Antártida. Antártico é o adjetivo correspondente às coisas da Antártida. Por isso, Círculo Polar Antártico, Montes Transantárticos, Oceano Antártico, região antártica.
Os esquimós, de origem mongólica, são nativos, isso sim, das costas árticas da Groenlândia, do Alasca e do nordeste da Ásia - regiões próximas do Círculo Polar Ártico, ao redor do pólo Norte, lado oposto ao pólo Sul. Eles não se dariam bem no pólo Sul.
Trata-se, portanto, de um pequeno engano, em que a Antártida se transformou em "Antártica", o ártico em antártico e o esquimó em nativo da Antártida, numa espantosa salada geográfica temperada pelo frio glacial. Congelado, o repórter personagem do comercial enganou-se de pólo e talvez tenha oferecido o novo guaraná Brahma a um pingüim disfarçado. Terá sido um espião da Antarctica? Jamais saberemos.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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