São Paulo, sábado, 8 de abril de 1995
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Nelson Rodrigues satiriza a esquerda

"A Cabra Vadia" faz painel político-cultural de 68

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Ler "A Cabra Vadia", livro de crônicas de Nelson Rodrigues que a Companhia das Letras lança dia 12, é, escrevendo à maneira dele, sofrer um espanto histórico. Um largo e cálido espanto histórico.
Pensar que um dia Ernesto "Che" Guevara, Geraldo Vandré, Mao Tse-tung, Stálin, Cuba e Pablo Neruda foram idolatrados por intelectuais e grã-finos com uma paixão digna de Cleópatra, a voraz rainha do Egito!
Um dia? Foi há apenas 27 anos.
Hoje o revolucionário boliviano, o cantor brasileiro, o líder chinês, o ditador soviético, a ilha do Caribe e o poeta chileno -a despeito de alguns nostálgicos e dos admiradores de charuto e rum cubanos- caíram no oblívio.
É o que mostram as 80 crônicas de "A Cabra Vadia", que o dramaturgo Nelson Rodrigues (1912- 1980) escrevia em sua coluna diária no jornal "O Globo".
Elas são como uma complementação das reunidas em "O Óbvio Ululante" (Companhia das Letras) também pelo jornalista Ruy Castro. Juntos, os dois livros formam um painel insuperável de 1968.
Toda a vida política e cultural da época -os festivais de MPB, a censura, a juventude dita rebelde, a "revolução" sexual, a intelectualidade marxista- recebe ali um retrato crítico, mas ao mesmo tempo mais exato, talvez, do que uma grande reportagem seria.
As crônicas de "A Cabra Vadia", por assim dizer, são 80 catucadas na esquerda "festiva" carioca, que gostava de berrar palavras de ordem enquanto entornava litros de uísque no Antonio's, Vermelhinho e outros bares.
E, amigo, quanto barulho e caca essas crianças faziam.
A satanização dos EUA. O silêncio em torno da obra de Gustavo Corção e outros bons escritores -porque reacionários, logo, desprezíveis. A abstenção da esquerda no protesto contra a censura às peças "obscenas" do próprio Nelson, esse outro reacionário.
Nelson também detecta puerilidades como a que chama de "doença infantil do palavrão".
Nesse texto, conta que foi ver "Roda Viva", a montagem do diretor Zé Celso da peça de Chico Buarque. Esperando o Chico tímido e sensível das canções. Mas só encontrou nomes e gestos feios.
"No fim", diz Nelson, "o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíra todo o caldo)."
Mas "A Cabra Vadia" não é um panfleto. O título se refere a uma brincadeira que Nelson fazia -"entrevistas imaginárias" num terreno baldio, onde as pessoas confessariam o que suas poses públicas escondiam, sob a presença única e fidelíssima de uma cabra.
Eis aí a verdadeira qualidade dessas crônicas: desmascarar imposturas, sabendo que estas são humanas, demasiado humanas, e portanto compreensíveis.
O estilo de Nelson, assim, faz crítica sem agressão pessoal. É esse, mais que o teor das opiniões, o fascínio de suas crônicas, afora a qualidade excepcional do texto.
Mas, enfim, Nelson era um reacionário ou não? Se você quer assim, tudo bem. Mas quem, na esquerda, escrevia ou escreve tão bem quanto ele? Escrever bem, disse o escritor inglês George Orwell, é pensar bem.
Ou seja: reacionário ou não, Nelson sempre esteve do lado certo -do lado da liberdade de expressão. E nada mais revolucionário que ela. A história o prova. As cabras vadias ouvem.

Livro: A Cabra Vadia
Autor: Nelson Rodrigues
Páginas: 300
Preço: não definido
Lançamento: dia 12

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