São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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A operação sanfona

ROBERTO CAMPOS

Cada vez mais o Real se parece com uma catedral construída sobre palafitas

"Não há nada que eles não saibam, mas só sabem isso."
(Marechal Pétain, sobre os intelectuais da ENA -École Nationale d'Administration)

Um dos paradoxos do cenário latino-americano é que o país mais vandalizado, que parecia condenado à mendicância -o Peru- foi bastante competente no ajuste ao terremoto internacional cujo epicentro foi o México. O Peru terminou o ano passado com superávit fiscal, crescimento real de 12,7% e uma inflação anualizada de apenas 15%. E não está experimentando fuga de capitais, porque 80% destes foram investimentos diretos em programas de privatização do petróleo, mineração e telecomunicações. Foi um resultado mais rápido que o do modelo chileno, que se desenvolveu lentamente desde 1974, com vários acidentes de percurso.
Ambos os países perceberam quatro coisas: a) que a Previdência Social privatizada pode servir de alavancagem para o desenvolvimento; b) que taxas cambiais sobrevalorizadas são funestas para as exportações; c) que na abertura para investimentos externos se deve encorajar o influxo de capitais permanentes através da privatização de setores básicos; e d) que as privatizações são poderoso instrumento para abater o estoque da dívida interna e reduzir juros castradores do setor privado.
Nenhum dos dois países cometeu a besteira que o Brasil está cometendo integralmente e o México, parcialmente, de entreabrir apenas uma fresta para capitais externos. O Brasil veda ou inibe o acesso de capitais estrangeiros a telecomunicações, petróleo, eletricidade e mineração; o México, a eletricidade e petróleo. A privatização desses setores, além das vantagens conhecidas de gerar receitas e aumentar a eficiência, trariam contribuição importante para neutralizar a volatilidade de capitais, atraindo investimentos permanentes. No caso mexicano, boa parte da dívida interna era financiada por venda de títulos do Tesouro, resgatáveis em dólares, a aplicadores atraídos pelo diferencial de juros em relação a Nova York. Em fins do ano passado, três fatores se compuseram para acelerar a "débâcle" mexicana: a) a perspectiva de instabilidade política, devido à rebelião de Chiapas e às lutas intestinas do PRI; b) a alta de juros no mercado americano; c) a sustentação de uma taxa de câmbio sobrevalorizada, que provocou um dilúvio de importações e premiou a fuga de divisas.
O trágico da história é que o novo programa de austeridade apresentado pelo presidente Zedillo será extremamente penoso para a população, por seu efeito recessivo. E não traz solução para o problema fundamental do estoque da dívida. Um programa mais suave, que compreendesse a venda de ativos da ineficiente e corrupta Pemex, seria muito mais convincente e de efeitos duradouros. Está sendo extremamente caro para o México manter o tabu nacionalista. Aliás, o nacionalismo, essa "forma zangada de patriotismo", costuma custar caro. Às vezes em sangue, às vezes em dinheiro, quase sempre em pobreza desnecessária...
Tem-se falado muito nas diferenças (significativas a nosso favor) entre o Brasil e o México. Preocupam-me mais as semelhanças. Cada vez mais o Plano Real se parece com uma catedral construída sobre palafitas...
As medidas que acabam de ser tomadas para conter importações interrompem nossa abertura e transformam-nos num país de tarifa sanfona. A tarifa de automóveis baixou de 32% para 20% em setembro passado, voltou a 32% em março e saltou para 70% em abril, ultrapassando o limite máximo (35%) admitido na Rodada Uruguai do Gatt. Essa "operação sanfona" transmitiu uma imagem contraditória aos agentes econômicos dentro e fora do país. Nossas autoridades financeiras pulam, sem transição, do piloto automático "está tudo bem" para o botão de pânico. Nesta altura, os investidores internacionais devem estar sacudindo a cabeça uns aos outros: bem, o Brasil não é o México. Mas afinal, o que é? Os investidores esperam, sobretudo, estabilidade das regras do jogo e previsibilidade de rumo. São produtos escassos na paisagem nacional.
Todas as soluções para o pânico criado pela hemorragia de importações são más. Trata-se de escolher o mal menor. A pior solução seria as quotas de importação, que não trazem receita ao governo e geram corrupção. A elevação obscena das tarifas de 109 produtos para 70% é eficaz para conter importações, porém em nada auxilia as exportações (coisa urgente, pelo insucesso na redução do custo Brasil). Nem alivia a desconfiança no mercado de capitais. Teria sido preferível elevar a Tarifa Externa Comum do Mercosul para 35% (conforme sugerido pelo ministro Cavallo) juntamente com o alargamento da banda cambial até o limite máximo da paridade entre o real e o dólar. Isso parecia mais realista e sustentável que bandas intermediárias microgerenciadas pelo Bacen, com queima de divisas. A psicologia popular conta. E sempre pareceu algo fantasmagórico e impermanente que o real valesse mais que o dólar.
Qualquer dessas medidas tem um certo impacto inflacionário. Este pode ser minorado pela contenção das tarifas públicas (exigindo-se das estatais correção de uma baixíssima produtividade), pelo desaquecimento do consumo já provocado pela alta de juros e pela redução das transferências voluntárias para Estados e municípios e auxílios a bancos estaduais.
Nada disso dispensa a aceleração das privatizações, coisa mais importante que a própria reforma fiscal. Além da mobilização da opinião pública em favor de votação mais rápida no Congresso das reformas constitucionais, duas coisas poderiam ser feitas. Uma seria a remessa ao Congresso de projeto de lei em regime de urgência, para dispensar o complexo ritual da dupla e dispendiosa avaliação por consultorias, no caso das estatais que já tenham ações cotadas em Bolsa. Leiloar-se-ia o bloco de ações de controle. O processo atual é de exasperante lentidão. A privatização da Light é discutida há três anos e até hoje não foi marcado o leilão. A privatização da Vale do Rio Doce durará outro tanto. Ambas as empresas têm milhares de acionistas privados e a Bolsa é a mais imparcial e acurada avaliadora, pois reflete não a percepção dos tecnocratas interessados em sobrevalorizar a empresa para manter suas mordomias, nem as elucubrações de consultores que subestimam riscos por não arriscarem seu próprio dinheiro, e sim o cálculo custo/benefício de quem se despede sofridamente da moeda em seu bolso...
Independentemente de qualquer lei, o governo poderia leiloar imediatamente todas as ações preferenciais ou ordinárias que excedessem os 50,1% do controle, compromissando-se a incorporar à diretoria um representante dos acionistas privados, que agiria como um auditor permanente até a venda do controle acionário.
Essas medidas dariam um pouco de receita ao Tesouro, mas sobretudo sinalizariam para o mundo que o Brasil está empenhado na reengenharia do Estado. E que não é governado por um bando de intelectuais amedrontados pelo nhenhenhém da Nomenklatura corporativista ou de políticos obsoletos que protegem mordomias. E que foram fragorosamente derrotados nas últimas eleições...

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