São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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O presidente de Goiás e as baratas

J. A. LEITE MORAES

J.A. LEITE MORAES
A casa tinha uma sala, uma alcova, um corredor e uma cozinha. Ficamos na sala, onde havia um catre sem colchão e um jirau de palmito. Eu e o Carlos Augusto fomos à cozinha e de lá trouxemos alguns pedaços de lenha e fizemos o fogo, e enquanto isso o alferes Dantas já tinha contado ao pobre caboclo que ali estava o presidente de Goiás etc.
Ao clarão do fogo desdobra-se diante dos nossos olhos um quadro assombroso, que se desenha nas quatro paredes do pequeno compartimento onde estávamos! O teto, as paredes, os arreios, ponches, botas, baixeiros, camas, o chão -tudo estava coberto de uma densa camada de baratas de todos os tamanhos e de todas as cores, cujo movimento produzia um som confuso que chegava aos nossos ouvidos!
Carlos Augusto, que estendera alguns baixeiros molhados ao chão e deitara-se prostrado pelo cansaço... ficou inteiramente coberto de baratas!
O bom do caboclo trouxe-me um colchão e lençol; agradeci-lhe a boa vontade; fez a cama no referido catre.
Daí a pouco trouxe-nos uma galinha ensopada; eu nem sei se a pudemos comer; a fome era extraordinária, mas a repugnância era maior! Carlos Augusto levantava-se, sacudia a roupa e os baixeiros e de novo deitava-se... mas as baratas de novo o cobriam dos pés à cabeça! Eu quis deitar-me na minha cama de presidente, experimentei por vezes e sempre levantei, porque as baratas subiam-me pelas pernas, passeavam-me pela cara, pelos cabelos, enfim pelo corpo todo.
Conservei-me de pé, sempre ateando o fogo; o alferes Dantas dormia, no jirau de palmito, profundamente; o pajem igualmente sobre um couro de boi estendido no corredor!
Só eu e o Carlos não podemos dormir! E a chuva continuava com intensidade, sempre acompanhada de trovões e relâmpagos.
Estávamos a duas léguas da estrada real, mas o caminho daí em diante só podia ser trilhado por um prático, e por isso contratei o caboclo para servir-nos de guia à madrugada.
E as baratas aumentam-se, assenhoreando-se da casa inteira; não há como mover-se, nem como sentar-se nem como deitar-se.
De pé -que é a melhor posição- sobem por dentro das ceroulas, das calças e por cima da roupa, que não há como evitá-las.
Sair ao terreiro é sair à chuva. O que fazer então? Resignarmo-nos à sorte, entregarmo-nos ao destino!
Trecho extraído do livro "Apontamentos de Viagem, de J.A. Leite Moraes, editado por Antonio Candido

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