São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 1995
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Significado é oposto para judeus e cristãos

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A coincidência das páscoas judaica e cristã neste ano aponta para uma relação mais antiga. Se suas datas raramente coincidem 100%, isso deve-se apenas aos calendários distintos segundo os quais o doutos de cada religião calculam quando se realizarão suas festividades. De acordo com os evangelhos, porém, a paixão de Cristo -a Páscoa cristã- ocorreu durante a Páscoa judaica.
Nessa ocasião, os judeus comemoram sua libertação do cativeiro egípcio. O sacrifício de um cordeiro havia sido ordenado, como narra o "Êxodo", por Deus a Aarão e Moisés. Jesus, como diz o "Evangelho de João", vem a Jerusalém precisamente durante esse festival para que o seu destino, enquanto "cordeiro de Deus", se consume na crucificação. Os judeus comemoram uma passagem -da escravidão à liberdade. Para os cristãos, trata-se não só da passagem sacrificial de Cristo, mas também do Antigo Testamento ao Novo.
Até aí tudo bem: uma transição desejável para alguns e inaceitável para outros. Só que o caráter dessas duas comemorações tão interligadas é intrinsecamente oposto. Para os judeus: júbilo. Para os cristãos: luto. Só resta um passo para se supor que o júbilo de uns é o luto dos outros e vice-versa. Quando se acrescenta o pequeno fato de que durante quase dois milênios os judeus foram acusados não só de rejeitar mas de ter morto o salvador -acusação da qual o Vaticano só os absolveu recentemente- não há como deixar de imaginar que seu júbilo decorre justamente... da morte de Cristo.
Para os judeus, então, tal coincidência, em vez de realçar os vínculos de continuidade -conflituosa é verdade, porém ainda assim continuidade- entre ambas as religiões, passou séculos a fio como uma ameaça de reabertura de feridas imaginárias -mas nem por isso menos dolorosas. Resultado: a associação da acusação de assassinato ritual à mais antiga de deicídio. Em outras palavras, era em geral durante seu luto pascoal que muitos cristãos, sentindo aguçar-se seu rancor, acusavam os judeus de usar o sangue de crianças recém-sacrificadas ritualmente para fazer o pão ázimo com que festejavam sua saída do Egito.
Fruto de um trágico mal-entendido, essa situação talvez já seja coisa do passado. A grande ironia está na origem mais remota da dupla Páscoa que, ao que parece, era uma comemoração de reinício do ano agrícola, da passagem do inverno para a primavera, enfim: da ressurreição cíclica da capacidade gerativa da terra.

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