São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 1995
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Sobe!

MOACYR SCLIAR

Quando cheguei ao estacionamento para pegar o carro, o zelador estava sentado no banco de trás, lendo a Folha.
- O senhor me desculpe -foi logo dizendo-, mas é que o seu jornal estava aberto, eu vi a notícia, me chamou a atenção, eu tive de ler. Porque é igualzinha à minha história.
A notícia era sobre um casal que vivia num elevador quebrado dentro do Edifício Martinelli. Morar dentro de um elevador? Aquilo me interessou. Ele não se fez de rogado:
- Era um prédio quase pronto que tinha sido embargado pelo juiz. Essas brigas de construtores, o senhor sabe como é. Aí começou a invasão: primeiro uma família, depois outra, no fim uma correria. Quando eu me antenei e disse para minha mulher que podíamos arranjar um apartamento, já era tarde: só sobrava um elevador. Para mim estava bom, porque a gente tinha chegado do norte e morava na rua, mas ela torceu o nariz: "Se ao menos fosse o elevador social!" De fato, era o elevador de serviço, mas -qual o problema? Eu nunca tinha usado outro elevador que não o de serviço. De modo que ali nos instalamos. O espaço não era muito grande, mas a nossa vantagem é que somos baixinhos, cabemos em qualquer lugar.
Ficou um instante em silêncio, lembrando. Suspirou e continuou:
- Ficamos lá um tempão. No começo, estava tudo muito bem. Com umas tábuas, eu fiz uma espécie de segundo andar no elevador, tipo cobertura, o senhor sabe como é?, e lá em cima a gente guardava roupa, comida, essas coisas. O térreo -eu gostava de falar em térreo, dava impressão de que a gente até morava em casa- nós dividimos em duas partes, uma onde a gente dormia, e outra, mais estreita, que era uma espécie de sala de estar. Quando a gente não estava dormindo, ficava sentado na sala de estar. Na hora de deitar, era só chegar um pouco para o lado, onde estava o colchonete, e pronto.
- E o banheiro?
- Ah, isto não tinha. Mas um conterrâneo emprestava. O banheiro e a cozinha. Em troca, eu fazia a limpeza do apartamento dele. Quer dizer: um arranjo muito bom. A gente podia ter ficado lá toda a vida.
- E por que não ficaram?
Ele suspirou de novo:
- Por causa da minha mulher. Ela sempre foi pobre como eu, mas tinha mania de grandeza. Eu dizia, mulher, você não sabe o que é ter um lugar para morar, mesmo que este lugar seja um elevador, já está mais que bom. Mas ela reclamava sem parar. Lá pelas tantas, resolveu que nós não podíamos continuar no térreo. Tínhamos de ir para o último andar. Lá a vista é muito melhor, dizia; e a vizinhança nem se fala, é gente fina. Mas como é que eu ia fazer o elevador subir, se o prédio não tinha luz? Tanto ela incomodou, que acabei pedindo a ajuda de um amigo, um eletricista desempregado. Ele fez uma ligação clandestina -era coisa de minutos- para botar o motor em movimento e fazer o elevador subir.
- E subiu?
- Subiu. Subiu uns cinco andares. E aí não sei o que aconteceu, o motor pegou fogo, os cabos também, o elevador desabou lá de cima e se espatifou no fundo do poço. Ficamos sem casa. Perdi a paciência e larguei a mulher. Hoje tomo conta deste estacionamento e durmo ali, naquele carro abandonado. O espaço é pequeno, mas para quem está solteiro, chega.

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