São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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D. Paulo critica FHC e teme rumo da Igreja

MARCELO MUSA CAVALLARI; JOSÉ GERALDO COUTO
DA REDAÇÃO

JOSÉ GERALDO COUTO
No ano em que comemora o cinquentenário de sua ordenação como padre e 25 anos de sua nomeação como arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, 73, está preocupado com os rumos da Igreja brasileira.
Ele recebeu a Folha em sua casa, no bairro da Luz (centro de São Paulo), para falar sobre política, história, religião e moral.
Dom Paulo disse que Fernando Henrique fez o "contrário" do que prometera a ele -lutar pelos pobres. "Isso o povo nunca perdoou", afirmou sobre o aumento de salários do presidente e dos parlamentares.
O cardeal-arcebispo falou sobre sua atuação em defesa dos presos políticos durante o regime militar. Disse ainda haver uma "tranquilidade demasiada e perigosa" na igreja. Teme que isso faça com que ela pare no tempo.
*
Folha - O sr. foi estudar na Sorbonne, podia ter uma confortável carreira acadêmica e acabou se tornando arcebispo de São Paulo num momento complicadíssimo da vida do país, da igreja e da cidade. Foi uma bênção ou uma provação?
D. Paulo Evaristo Arns - Como diz São Paulo, "para quem ama, tudo acaba revertendo para o bem". E a minha vida foi agitada desde o começo.
Minha estada em Paris não foi nada tranquila. Cheguei lá em outubro de 47, já tinham começado as aulas. Eu tinha como colegas entre 250 e 300 ex-prisioneiros de guerra franceses. Vivi então cinco anos com pessoas que haviam feito a guerra, alguns deles nas piores prisões alemãs.
Vivi na França cinco anos agitados. Não tinha comida. Havia filas para pegar um pedaço de carne ou um pão. Tinha greve todos os dias.
Folha - E o ambiente cultural, como era?
D. Paulo - Estavam lá todos os grandes escritores da época: André Gide, André Malraux, Paul Claudel, aquela turma toda, e eles nos acolhiam constantemente.
Você saía da universidade e ia escutar conferências desses grandes nomes, às vezes ao ar livre, debaixo de neve.
Havia uma revolução no pensamento. A idéia de que não havia governo possível, porque todos tinham sido experimentados e nenhum deu certo.
Fui também à Alemanha, vi a Alemanha destruída.
Folha - O sr. é descendente de alemães, não é?
D. Paulo - Sim, mas muito distante. Nem meu pai sabia alguma coisa da Alemanha. Mas eu sabia a língua, como sabia também francês e inglês, o que me ajudava a ir a tudo quanto é canto da Europa.
Aliás, quando eu voltei ao Brasil, passei seis meses no Rio reaprendendo português.
Folha - Isso foi em 50?
D. Paulo - Em 52. Morei no largo da Carioca. Lá me convidaram para ajudar a fundar a Universidade de Bauru, que existe até hoje.
Todo mundo era Flamengo no morro. Mesmo assim tinha briga, porque o pessoal bebia muito.
Mas fiquei muito amigo desse povo e descobri que a favela é melhor sociedade que essa que se diz organizada. Por exemplo, na questão da solidariedade no sofrimento, da ajuda na pobreza.
Folha - Como foi sua vinda para São Paulo?
D. Paulo - Vim a contragosto, porque adorava meu trabalho em Petrópolis. Mas fui muito bem acolhido. Na região norte eu fiquei quatro anos e meio como bispo auxiliar, trabalhando com dinâmica de grupos.
Em 1970 me fizeram arcebispo. E logo tive de enfrentar a repressão. Prenderam um padre e uma irmã. Mas eu já vinha, como bispo auxiliar, visitando presos, estava a par de tudo.
Folha - Como era sua relação com os militares?
D. Paulo - Nunca procurei entrar em atrito com eles. Pelo contrário: tinha acesso ao general-comandante. Era só telefonar.
Levava a listas de presos, dizia que estavam sendo torturados. Ele perguntava como é que eu sabia.
Era simples: esses soldadinhos, que trabalhavam lá, eram católicos, ou tinham sentimentos bons. Então eles davam um jeito de passar bilhetinhos para mim, às vezes numa folha de jornal: "Tais e tais estão sendo torturados, este já morreu, este está mal" etc.
Foi nessa época que comecei a conhecer o Fernando Henrique. Participamos dessas lutas juntos, até formamos um grupo para discutir como mudar a situação sem violência.
Folha - O sr. tem se encontrado com FHC depois que ele se tornou presidente?
D. Paulo - Para falar a verdade, só estive uma vez com ele. Conversamos -ele, o Covas e eu- naquela salinha ali ao lado, bem à vontade. O diálogo foi muito proveitoso, mas ele não seguiu, não.
Folha - O que o sr. pediu?
D. Paulo - Não sei se é publicável (risos). Mas eu sugeri exatamente o contrário do que ele fez.
Para mim, o primeiro grande ato dele deveria ser a favor da classe operária ou dos pobres. Aumentar salários, qualquer coisa assim, e diminuir os privilégios da classe alta. Para ele poder dizer: "Eu sou do povo, apesar de ser um intelectual".
Ele se virou para o Covas e disse: "É uma idéia interessante".
Mas fez o contrário: aumentou o salário dos parlamentares e o dele próprio. Isso o povo nunca perdoou. Não faria mal fazer o contrário, algo que balançasse o Brasil, que acordasse o pessoal.
Folha - Na época da ditadura, a igreja conseguiu ser o centro aglutinador da resistência democrática. Com a abertura, os diversos grupos foram achando seus caminhos, nos partidos, em outras organizações. Que papel sobrou à igreja?
D. Paulo - Bom, aí eu distingo um pouco o que você chama igreja hierárquica, que são os padres, e a igreja que é povo.
Por exemplo, a igreja que é povo trabalha hoje na Comissão Justiça e Paz como antes. Só que trabalha fazendo livros didáticos, participando de congressos.
Não é um trabalho que choca, como antes, mas um trabalho que vai dar frutos daqui a algum tempo. Estamos formando já a quinta escola de educação política.
Amanhã (quinta-feira) eu vou apresentar aos padres o sétimo plano de pastoral de conjunto, sobre temas como educação, saúde, moradia. Todo mundo está trabalhando, mas dentro de um outro sistema, para um Brasil de daqui a cinco, dez anos. Não é mais um Brasil que está pegando fogo e que você tem que apagar.
Folha - A igreja não perdeu muito de sua força política?
D. Paulo - Eu não estou pensando que a igreja perdeu o elã. Estou pensando que a igreja talvez tenha mudado de ritmo e também de pontos estratégicos.
Não fazemos mais coisas para serem publicadas em jornal, como antigamente. Se não era publicado -na Europa, nos Estados Unidos ou aqui- não adiantava.
Hoje, não. Voltamos à posição de uma igreja que trabalha para o povo e procura educar e levar esse povo à autoconsciência, a tomar a história na mão. Eu sozinho ordenei 270 padres.
Nunca um bispo na Diocese de São Paulo ordenou tantos. E tenho ainda uma meia dúzia de bispos auxiliares que ordenaram não sei quantos. Então, se você vê o clero, hoje, é um clero renovado.
Folha - Uma pesquisa recente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) constatou uma tendência conservadora entre os jovens seminaristas, que estão se distanciando da Teologia da Libertação. Como o sr. vê isso?
D. Paulo - É verdade, existe essa tendência. Mas é curioso: eu mandei nos últimos sete anos 20 desses padres novos para tirar o doutorado em Louvaine (Bélgica), Paris e Roma. Eles são considerados lá como avançados. A gente os considera conservadores. Mas na Europa eles são avançados.
Às vezes pergunto a mim mesmo o que é ser conservador. Sou conservador, sou avançado? A gente é o que o momento oferece.
Não estamos mais num tempo como o do Concílio Vaticano 2º (1963-65), em que a igreja inteira reviu tudo. Aí, sim, havia os que aceitavam e os que não aceitavam. Agora, não. Aquilo está tudo aceito. Então é natural que essa turma jovem não tenha aquele espírito de pôr em prática, a ferro e fogo, o que o Concílio resolveu.
Eles estão quietos, não fazem passeata, mas não são conservadores. O momento é que mudou.
Folha - É que a igreja brasileira ficou muito identificada com a Teologia da Libertação.
D. Paulo - A Teologia da Libertação é que era interpretada de modos diversos.
Por exemplo, uma vez fui à Alemanha e alguém fez uma conferência dizendo que no Brasil cada criança pobre tinha revólver e sua libertação consistia nisso: sair da miséria matando os outros.
Eu trabalhei 13 anos e meio em favelas e nunca vi uma criança sair matando outros para sair da miséria. Pelo contrário: meu trabalho consistia em acordar a consciência deles para o fato de que estavam na miséria e podiam sair dela, através da união e da organização.
Folha - A Teologia da Libertação foi acusada de secularizar os fins, de deixar de lado o papel espiritual da igreja em nome de uma atuação apenas política.
D. Paulo - Essa é a acusação mais frequente que você ouve na Europa, na América do Norte. Eles dizem: "Vocês esquecem que estamos educando pessoas para uma esperança de eternidade, e não de um tempo aqui".
E nós dizemos: "Se não houver um começo de um tempo aqui, também não haverá eternidade". Eles não compreendem que a gente tenha que lutar por justiça social, por uma certa igualdade entre os homens e assim por diante.
Folha - Mas a Teologia da Libertação não saiu dos limites do cristianismo? Num encontro de Cebes em que se fez aquele texto que criticava a chegada dos europeus à América, chegou-se a atacar a chegada do monoteísmo europeu.
D. Paulo - Quem cometeu esse erro não foram os bons teólogos, mas os teólogos que falam ou pensam através de slogans, que não tomam o Evangelho todo.
O slogan dura meio dia, mas a doutrina pode voltar daqui a um ano, de novo, renovada. Existem teólogos da libertação que não leram nem os livros de Gustavo Gutierrez, que são a base da Teologia da Libertação.
Folha - A tendência conservadora entre os jovens católicos tem mais a ver com as circunstâncias históricas que com o pontificado de João Paulo 2º?
D. Paulo - Sim. Se você não tem desafio, não revela o que você é. Esses padres novos não têm mais os desafios de antes.
Os desafios de antes eram os de lutar contra a polícia, porque, se você cuidava de um pobre, ou trabalhava numa favela, você era preso como comunista. Isso desapareceu. Os jovens hoje se revelam em outros campos.
Mas é verdade que entramos numa certa tranquilidade um pouco demasiada e até perigosa para a igreja, que se arrisca assim a parar no tempo.
Mas de repente vem um choque. E esse choque a gente já está percebendo. Vem uma nova geração que começa a trabalhar de novo naquele sistema de justiça social. Por exemplo: você não tem mais nem um padre por aí que não seja contra o neoliberalismo.
Folha - O sr. acha que se aproxima a época de uma nova reação da igreja contra as injustiças sociais e políticas?
D. Paulo - Se a situação não mudar, não tenho dúvida. E mesmo se a situação mudar no sentido de um certo equilíbrio, aí acho que haverá um aprofundamento numa prática mística, cética, como houve no século 16, como houve com São Francisco etc.
Surgirão aqueles líderes espirituais que vão para uma espiritualização autêntica, não fictícia ou superficial. Mas isso em todas as religiões, não só na católica.
Folha - As igrejas evangélicas cresceram muito no Brasil e na América Latina, tirando uma parcela do rebanho católico. Como o sr. interpreta isso?
D. Paulo - Fizemos algumas reuniões sobre isso, chamamos sociólogos para analisar a questão, fizemos um inquérito em todas as paróquias do Estado. Em geral, constatou-se que isso acontece por falta de relacionamento pessoal, de acolhimento pessoal.
Folha - Do padre com a comunidade?
D. Paulo - Não só do padre, mas dos católicos em geral. Porque o padre é um só, mas na sua paróquia tem 200 ou 300 pessoas trabalhando dentro da igreja. E a gente se desacostumou de receber o próximo.
Folha - A igreja se distanciou da comunidade?
D. Paulo - Se distanciou. Se distanciou daqueles que acordaram. Antigamente eles iam, simplesmente. Agora, não. Ou eles vão com consciência ou não vão.
Folha - Então a igreja está preocupada com isso?
D. Paulo - Não digo que esteja preocupada, mas está querendo se reeducar para um acolhimento mais fervoroso, mais amigo etc.
Eu tenho acompanhado os padres novos, que vêm do povo, eles têm muito mais jeito de voltar ao povo do que os antigos, que estudaram desde crianças em seminário e agora, para ir ao povo, têm uma certa dificuldade.
Folha - A imprensa costuma desenhar uma oposição do papa João Paulo 2º à igreja brasileira, ou pelo menos ao clero progressista. Sempre se fala da divisão da Diocese de São Paulo como um golpe contra o sr. O sr. viu isso como um golpe?
D. Paulo - Dele, não. Pelo contrário. Conversamos com a mesma franqueza e intimidade com que estou conversando com vocês.
Nunca ele manifestou o menor problema a meu respeito. Meus problemas sempre foram com a Cúria Romana. Com o papa, não.
Ele mesmo me disse: "Mas não pode dividir a diocese, não pode. Diga lá ao responsável da Cúria que não pode". Eu disse: "Mas o sr. tem o telefone dele. Pega e avisa". Ele não telefonou.
Folha - Isso não seria uma "mineirice" dele?
D. Paulo - Pode ser (risos). Nunca pensei nisso, mas pode ser. Mas acho que, antes, é uma lei. Um papa não pode pegar o telefone para tratar de coisas assim. Porque, se ele começa, não pára mais.

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