São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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Dossiê da fisiologia mostra ação do 'balcão de trocas' do governo FHC

LUCIO VAZ; MARTA SALOMON; JOSIAS DE SOUZA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Dossiê da fisiologia mostra ação do 'balcão de trocas' do governo FHC
A causa da sucessão de derrotas do governo de Fernando Henrique Cardoso no Congresso é a briga que se trava nos subterrâneos de Brasília para preencher 21.253 cargos.
Com base em investigação realizada na Câmara e no Senado, a Folha elaborou um dossiê da fisiologia. O jornal obteve documentos e depoimentos que expõem a batalha em que se envolveram os partidos aliados de FHC. Os governistas se engalfinham por qualquer espaço do organograma do Estado que possa lhes render votos.
Ao contrário do que se divulga oficialmente, FHC instalou um "balcão de trocas" no Palácio do Planalto. Mas, cauteloso, distribui os cargos em ritmo de conta-gotas.

Indios não
A lentidão impacienta os congressistas. Enquanto aguardam uma definição sobre os seus pedidos, o grosso dos aliados vota contra os interesses do presidente.
Disputam-se desde espaços no programa Comunidade Solidária, tocado pela primeira-dama, Ruth Cardoso, até diretorias de estatais. As mais cobiçadas são as "teles", subsidiárias da Telebrás.
Só as delegaciais estaduais da Funai (Fundação Nacional do Índio) são desprezadas pelos políticos. A explicação é singela: índio não vota nem rende votos.

Máquina de votos
É esta a lógica da filosofia franciscana do "é dando que se recebe", que está de volta à cena política. Para obter votos na Câmara e no Senado, o governo é intimado a entregar aos aliados cargos que possam gerar votos.
O deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), por exemplo, classifica a Comunidade Solidária, programa social do governo, como "uma máquina de fazer votos.
Segundo ele, há uma enormidade de políticos querendo fazer "indicações". Explica: "É para conseguir cadeira de rodas, muleta, credenciamento de creches..."

Resposta das urnas
Tome-se o exemplo do líder do PTB na Câmara, Nelson Trad (MS), que já disputou até direção de presídio.
Hoje envolvido em empreitadas de maior vulto, Trad luta para manter na presidência da Telems (Telecomunicações do Mato Grosso do Sul) seu apadrinhado Carlos Eduardo Ferreira de Almeida, além de quatro diretores.
Seu empenho encontra uma boa explicação nos boletins de votação da última eleição para o Congresso, realizada em outubro de 94.
Antes do pleito, Trad pediu a Ferreira de Almeida, seu afilhado na Telems, que plantasse orelhões e postos telefônicos nas comunidades de Aquidauana, Miranda e Furnas do Dionísio.
O deputado compareceu a todas as inaugurações. Nas eleições de outubro, colheu os lucros: cerca de 1.800 votos em Aquidauana e 1.790 em Miranda, o que corresponde a 63% do eleitorado das duas comunidades. Em Furnas, fez 180 dos cerca de 400 votos, ou seja, 45% do total.

Até o PDT
Como esse, há dezenas de casos de políticos que disputam espaço nas companhias telefônicas. Em carta enviada ao chefe do Gabinete Civil, Clóvis Carvalho, os deputados e senadores do Espírito Santo pediram a manutenção de Sérgio Borges, atual presidente da Telest, a "tele" capixaba.
O ofício é assinado até por Luiz Durão, do PDT de Leonel Brizola, estrela da oposição.

Operação caótica
O ministro das Comunicações, Sérgio Motta, ameaça trocar 26 dos 27 presidentes de "teles". Morta só não deve mexer no engenheiro Sizuo Arakawa, indicado há dez anos pelo senador baiano Antônio Carlos Magalhães, imperador do PFL.
Apesar de bem-tratado, ACM diz, sob reserva, em diálogos com seus aliados, que o governo vem agindo com "amadorismo".
ACM acha que, entregue a "profissionais", a partilha de cargos duraria escassos 15 dias. Vencido esse período, o governo seria imbatível no Congresso.
O Palácio do Planalto resiste à idéia de fatiar a máquina pública a toque de caixa. Fernando Henrique acha que a distribuição precisa ser feita. Mas de modo disciplinado.
O problema é que a disciplina do presidente é vista pelos congressistas como má-vontade.

Falta de interlocutor
Inicialmente, estabeleceu-se que só seriam aceitas as indicações que, patrocinadas pelas bancadas estaduais, fosse levadas ao Planalto pelos presidentes dos partidos. Não funcionou.
Decidiu-se nomear um ex-deputado tucano, José Abrão, para fazer o meio-de-campo entre o Planalto e o Congresso. Há 20 dias no posto, Abrão recebeu mais de cem currículos.
Como as nomeações não saem, perdeu o crédito.
Agora, estabeleceu-se uma espécie de vale-tudo. Sem interlocutor definido, os congressistas enviam os ofícios ao presidente da República, à chefia do Gabinete Civil, à Secretaria Geral da Presidência ou aos ministros.

O Piauí e o Brasil
Ao reclamar a presença de um "profissional", ACM toca no ponto central do nó em que se meteu o governo.
O Congresso olha com desconfiança para os dois principais operadores do rateio de cargos: os técnicos Clóvis Carvalho e Eduardo Jorge, respectivamente chefe do Gabinete Civil e secretário-geral da Presidência.
Em conversa com Fernando Henrique, ACM anteviu o problema há cerca de um mês e meio. Ficou impressionado com um caso que ouviu da boca do senador Hugo Napoleão, cardeal do PFL.
Magoado, Napoleão relatou-lhe um encontro que tivera com Clóvis Carvalho, incumbido pelo presidente de recolher todos os pedidos de empregos dos políticos.
"Ministro, vim lhe pedir que ajude o Piauí", disse Napoleão a Clóvis. "Senador, o Brasil já ajudou demais o Piauí. Chegou a hora de o Piauí ajudar o Brasil", devolveu o chefe da Casa Civil.
Napoleão deixou o Planalto com aquela frase atravessada. Foi queixar-se aos colegas de partido.
Desde então, ACM passou a referir-se a Clóvis Carvalho como "um burocrata de fazer inveja aos governos militares". Por ordem de Fernando Henrique, Napoleão foi chamado de volta à Casa Civil. Fizeram-se as pazes.

Crédito rural
Mas Clóvis, encarregado pelo presidente de receber os pedidos de emprego dos políticos, não parou de fazer inimigos.
O presidente do PMDB, deputado Luiz Henrique (SC), por exemplo, chama-o de desleal pelos corredores do Congresso.
A fúria de Luiz Henrique nasceu no dia em que o deputado foi a Clóvis para pedir-lhe que mantivesse seu afilhado Saihd Miguel no posto de diretor de Crédito Rural do BB (Banco do Brasil).
O deputado cobriu seu indicado de elogios. Ao que Clóvis retrucou: "Se ele é tão bom para conceder créditos agrícolas, poderíamos aproveitá-lo agora para cobrar esses mesmos créditos" (a inadimplência nesta área é alta).
Luiz Henrique não foi atendido. Liberado por Clóvis, o presidente do BB, Paulo César Ximenes, ele próprio uma escolha técnica, substituiu o afilhado do deputado por um homem de confiança, Ricardo Conceição.
Há uma semana e meia, a ironia de Clóvis teve uma dura resposta do Congresso.
Em votação secreta, com o auxílio do PMDB, dono da maior bancada, os ruralistas derrubaram a cobrança da TR (Taxa Referencial de juros) sobre os financiamentos agrícolas. Foi a maior derrota do governo até aqui.
(Lucio Vaz, Marta Salomon e Josias de Souza)

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sobre fisiologia às págs. 1-15 e 1-16

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