São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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Monopólios e informação

MARCELO LEITE

Tédio é a sensação mais comum quando entram em pauta quebra de monopólios ou democratização dos meios de comunicação. Contra ou a favor, quem se dispõe a levantar esses temas tem quase sempre opinião formada -de alto teor ideológico- e o interlocutor ou leitor mais calejado já pressente que nada terá a ganhar, além de alguns momentos de aflição e desalento. Mas há exceções.
Uma delas, destacada, foi manchete da Folha do último domingo: "Globo monopoliza setor de TV a cabo". Em lugar das habituais acusações vagas e palavras de ordem, informação: "Roberto Marinho é sócio de 42 das 70 operadoras", prosseguia o subtítulo (ou linha-fina) da primeira página. Um vespeiro.
O que está em jogo é um mercado potencial de 6 milhões de assinantes, dentro de cinco anos. O suficiente para gerar uma receita anual de R$ 2,9 bilhões, fora publicidade, informava a fornida reportagem da pág. 1-16.
É verdade que o jornal não usou nada da capacidade de editorialização que mobiliza contra os defensores de outros monopólios, os estatais. Mas não será o ombudsman a reclamar, porque desta vez foi feita a coisa certa. Não havia uma acusação, aberta ou velada, no texto. Os fatos -e os números- falavam por si próprios.
O dinossauro Globo, depois de se impor com a competência de um velocirráptor no triássico da comunicação brasileira, multiplica-se como as bestas de Spielberg no jurássico das telecomunicações. Qualquer adepto sincero do liberalismo, que não se contente com o papel de ideólogo-sabujo, deveria preocupar-se não só com a quebra do monopólio estatal, mas também com a regulamentação desses monopólios privados em plena gestação.
Surpreendentemente, a Folha não publicou até sexta-feira (quando escrevo esta coluna) nenhum editorial sobre o assunto.
É de liberdade de informação, de acesso à informação, que se trata aqui. Do controle excludente sobre os canais de distribuição futura da informação. Algo impensável, por exemplo, no desenvolvido mercado norte-americano, em que Roberto Marinho dificilmente seria proprietário ao mesmo tempo da Rede Globo e do jornal "O Globo".
Como jornalista, cidadão e ombudsman, espero que a imprensa e a sociedade saibam fazer alguma coisa com essas informações preciosas. Que tirem consequências, mudem a legislação, investiguem. Enfim, que recheiem a tal modernidade com todos os ingredientes da receita liberal, não só com o sal amargo de sua contrafação subequatorial.
De outro modo, essa revelação -que nem é a de um crime ou falcatrua, só a de um absurdo- cairá na vala comum em que a imprensa abandonou tantas denúncias vazias: o homem da mala da OAS, o rombo dos fundos de pensão das estatais, a investigação do Congresso sobre supostos vazamentos de informação cambial...
Sigilo
Os jornalistas não só se enredam com os monopólios alheios como também praticam um tipo muito peculiar, bem seu: o de fonte. Jornais e revistas pululam de informações em "off" (sem identificação de fonte), inclusive a Folha. Dê-se por satisfeito o leitor se a publicação der alguma dica sobre isso, como a frase "a Folha apurou".
A expressão tem origem na locução inglesa "off the record" (fora dos registros). Ou seja, uma informação que não deixa marca (gravação, taquigrafia etc.). Portanto, não "existe".
O recurso é legítimo, se usado com parcimônia e só para obter informação realmente importante. No Brasil, é uma festa. Muitos políticos e empresários só falam em "off", resguardando-se covardemente no anonimato.
A maioria dos jornalistas, em particular nas áreas de política e economia, acha ótimo. Por uma dessas deformações típicas do subdesenvolvimento, obter informações dessa forma espúria tornou-se indicador de prestígio profissional.
Aceitar o sigilo da fonte -ou, muito pior, oferecê-lo- é traficar com um direito fundamental do público. A identificação da origem é parte constituinte da informação. Por uma razão muito simples: para quase toda informação, sempre há alguém interessado em ocultá-la ou em divulgá-la. O nome, ou uma pista que seja sobre a fonte, permitirá avaliar quais motivações estão por trás dela.
Um exemplo desta semana: a reportagem "Governo vê falta de empenho de ministro", na pág. 1-6 da Folha de quinta-feira. É uma das peças mais inconsistentes e nebulosas que o jornal publicou nos últimos tempos.
A suposta notícia: "O governo avalia que o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, não está se empenhando na defesa da proposta de reforma da Previdência Social que acaba com a aposentadoria especial para os professores".
Um lide (parágrafo de abertura) com tanta densidade noticiosa quanto um comunicado oficial de Saddam Hussein ou Fidel Castro, logo se vê. Supõe-se que "o governo" seja o presidente Fernando Henrique Cardoso, ou alguém falando (supostamente) em seu nome. Mas quem?
Como, quando e onde são outras perguntas que esse pseudolide não se deu ao trabalho de responder. Quanto ao por quê, Deus sabe (no final do texto vem a menção a um aborrecimento do ministro com o jornal, mas prefiro descartar a possibilidade infame de que se trate de uma retaliação).
No segundo parágrafo vinha a senha da informação em "off": "A Folha apurou que, na avaliação do governo, o ministro poderia ter evitado o aumento nos pedidos de aposentadoria de professores das universidades federais".
E dizem que o governo tem problemas de comunicação. Pelo visto, não com a Folha, que se dispõe a mandar recados como esse (deixo de lado outra hipótese, a de que o autor do recado não tenha sido o Planalto, porque neste caso a expressão "o governo" seria simplesmente uma fraude).
É difícil falar em notícia, no caso. Nada há de material, nessa suposta crítica. Jamais poderia ter sido ocultado sob o biombo do "off".
Mesmo sendo um dos autores do "Novo Manual da Redação" da Folha, vejo-me obrigado a reconhecer que o tratamento dado à questão (págs. 38-39) é um tanto deficiente. Além da descrição e da tipologia com diferentes modalidades de "off", limita-se a endossar uma espécie de carta branca: "No Brasil, a maioria das informações 'off the record' são publicadas".
Compare-se com a formulação do muito citado e pouco imitado "The New York Times" ("Manual of Style and Usage", 1976, pág. 191):
"A melhor fonte de notícias -melhor para o jornal e melhor para seus leitores- é a fonte identificada por seu nome. Mas também é verdade que um jornal, para dar aos leitores informação que lhes seja vital, pode ser obrigado por vezes a obtê-la de fontes que não se encontrem em condição de identificar-se.
"A decisão de permitir anonimato da fonte deve ser justificada antes de mais nada pela convicção do repórter e do editor não só de que não há outra maneira de obter a informação, mas também de que ela é tanto factual quanto importante."
Certamente, com tais critérios, a "notícia" sobre Paulo Renato Souza não sairia no "The New York Times". Poderia, também, não ter saído na Folha.

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