São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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A ILUSÃO DO SÉCULO

DA REDAÇÃO

Lançado em março na França, "O Passado de Uma Ilusão - Ensaio sobre a Idéia de Comunismo no Século 20", do historiador François Furet, alcançou de imediato o posto de ensaio mais vendido no país (leia texto abaixo). A seguir, a Folha publica com exclusividade um trecho do livro.
Furet, 67, é um dos mais importantes historiadores da atualidade, autor de vários estudos sobre a Revolução Francesa e conhecido por sua oposição às leituras marxistas da história, como as realizadas por Henri Soboul e Henri Lefèvre.
"O Passado de uma Ilusão" foi publicado pela editora Robert Laffont/Calmann Lévy (580 págs., 149 francos). A tradução brasileira chega às livrarias no segundo semestre, pela Siciliano.

FRANÇOIS FURET
A guerra de 1914 tem para a história do século 20 o mesmo caráter fundamental que a Revolução Francesa para o século 19. Dela podemos derivar diretamente os sucessos e movimentos que estão na origem das três "tiranias" de que fala Elie Halévy em 1936. A cronologia o confirma à sua maneira, uma vez que Lênin sobe ao poder em 1917, Mussolini em 1922 e Hitler fracassa em 1923 para ver seus esforços recompensados dez anos mais tarde. Ela faz supor uma comunidade de época entre as paixões suscitadas por estes regimes inéditos, que fizeram da mobilização política dos antigos soldados a alavanca da dominação total de um único partido.
Por aí abre-se um outro caminho ao historiador para a comparação das ditaduras do século 20. Não se trata mais de examiná-las à luz de um conceito, no momento em que atingiram respectivamente o auge de sua evolução, mas, antes, de seguir sua formação e seus êxitos, de modo a entender aquilo que cada uma possui de específico e de comum com as outras. Resta, enfim, compreender o que a história de cada uma deve às relações de imitação ou de hostilidade mantidas com os regimes de quem tomaram emprestados alguns traços. Imitação e hostilidade não são, aliás, incompatíveis: Mussolini imita Lênin para vencer e impedir o comunismo na Itália. Hitler e Stálin darão vários exemplos de cumplicidade beligerante.
Esta maneira de abordar o assunto, que constitui uma condição prévia natural ao inventário de um tipo ideal como o totalitarismo, tem a vantagem de seguir mais de perto o movimento dos acontecimentos. Ela apresenta, porém, o risco de oferecer uma interpretação demasiado simples, por meio de uma causalidade linear, onde o que vem antes explica o que vem depois. Assim, o fascismo de Mussolini de 1919 pode ser concebido como uma "reação" à ameaça de um bolchevismo à italiana, surgido ele também da guerra e estruturado em maior ou menor medida no exemplo russo. Reação no sentido mais amplo do termo, pois, vindo como Lênin de um socialismo ultra-revolucionário, Mussolini possui tanto mais facilidade de imitá-lo para melhor combatê-lo. Também se pode fazer da vitória do bolchevismo russo em outubro de 17 o ponto de partida de uma cadeia de "reações" em que o fascismo italiano e o nazismo aparecem como respostas à ameaça comunista, efetivadas de acordo com o modo revolucionário e ditatorial do comunismo. Uma interpretação deste tipo pode conduzir, se não à uma justificação, pelo menos a uma desculpa parcial do nazismo, como o demonstrou o recente debate de historiadores alemães sobre o tema: mesmo Ernst Nolte, um dos maiores especialistas dos movimentos fascistas, não foi capaz de fugir a esta tentação. Além disto, tal abordagem apresenta o inconveniente de atenuar a particularidade de cada um dos regimes fascistas -não mais por recorrer a um conceito único, mas por defini-los em função de um inimigo comum.
Neste sentido, ela acaba por agravar os inconvenientes vinculados a uma aplicação indiferenciada do conceito "totalitarismo". Se os movimentos fascistas não passam de reações ao bolchevismo, o modelo em que se inscrevem não permite compreender nem sua singularidade, nem sua autonomia, nem as origens e paixões que porventura compartilham com seu inimigo. Sua delimitação num repertório comum da pura negatividade retira-lhes a riqueza para a análise de suas respectivas características e desconsidera as relações que cada um deles mantém com seu antípoda, seja como movimentos ou, mais tarde, como regimes. Em vez de simplesmente reconduzir todos os fascismos a uma fonte comum e fazê-los navegar juntos o tumultuado curso do século, parece-me mais frutífero inventariar os documentos e os diversos personagens. Este é, de resto, o caminho seguido pela maioria dos trabalhos históricos sobre a questão.
Pois, se o comunismo é indispensável à compreensão do fascismo (mas a recíproca também é verdadeira), isto se deve por razões mais amplas do que o sugere a cronologia que vai de Lênin a Mussolini, 1917-1922, ou de Lênin ao primeiro Hitler, 1917-1923, segundo uma lógica de ação-reação. Bolchevismo e fascismo sucedem-se, engendram-se, imitam-se e combatem-se, mas antes de tudo nascem do mesmo solo: a guerra; eles são filhos da mesma história. É correto dizer que o bolchevismo, o primeiro a entrar em cena, radicalizou as paixões políticas. Mas o medo que ele suscita na direita -e para além dela- não basta para dar conta de um fenômeno como o surgimento dos "feixes" italianos em março de 1919. Afinal, bem antes da guerra de 1914 as elites e as classes médias da Europa viviam em meio ao terror do socialismo, afogando em sangue tudo o que se assemelhasse a uma insurreição operária, a exemplo da Comuna de Paris de 1871. Ora, o século 19 não viu nascer nada comparável ao fascismo. As reações de rejeição, ou mesmo de pânico, podem explicar o consentimento dado a este ou àquele regime: elas evidenciam aquilo que um regime fundado sobre o medo comporta de antiliberal, mas não vão além disto. Nada dizem sobre sua natureza, e menos ainda sobre sua novidade.

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