São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995 |
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A ILUSÃO DO SÉCULO
DA REDAÇÃO Bolchevismo e fascismo levam à política o que aprenderam com a guerra, como o hábito da violência e a submissão do indivíduo à coletividadeFilhos da guerra, bolchevismo e fascismo retiram dela suas características elementares. Eles transpõem para a política o aprendizado recebido nas trincheiras: o hábito da violência, a simplicidade das paixões extremadas, a submissão do indivíduo à coletividade e por fim a amargura dos sacrifícios inúteis e das traições. Pois é nos países derrotados nos campos de batalha ou frustrados pelas negociações de paz que estes sentimentos encontram seu campo de ação por excelência. Eles introduzem na ordem política a supremacia numérica que os liberais do século 19 tanto temiam no sufrágio universal-onde ela não era tão perigosa-e com a qual eles se deparam onde não a esperavam encontrar: nos milhões de cidadãos unidos não mais para o exercício solitário de um direito, mas pelo infortúnio compartilhado da servidão militar. Como muitos já notaram, o período após a Primeira Guerra Mundial inaugura a era das massas. Mas esta nova época não surge daevolução progressiva e como que natural da democracia. Ela irrompe na história por uma porta que se poderia dizer condenada, uma vez que as sociedades modernas foram descritas por tantos grandes espíri tos dos séculos 18 e 19 como voltadas inteiramente para a produção inicia este século é, num certo sentido, um sinal do progresso da democracia: ela faz da maioria, isto é, do mais modesto dos cidadãos, um sujeito ativo da nação. Em contrapartida, ela integra este cidadão à política não pela educação, como acreditavam os otimistas, mas pelas recordações de uma guerra que pouquíssimos haviam previsto, desejado ou avaliado em suas proporções -para não falar em suas consequências. As massas não entram em cena como um con junto de indivíduos esclarecidos que passaram por um aprendizado progressivo da política moderna. Elas carregam as paixões simples da guerra nas ruínas encontradas pela paz, e compreendem melhor a linguagem da comunidade fraternal dos combates do que a das lutas civilizadas pelo poder. Este discurso é aclamado pela direita, como uma homenagem à tradição, mas também pela esquerda, como uma promessa de futuro. E não seria preciso aguardar muito após o final da guerra para que o termo "socialismo", reinventado pela direita, iniciasse uma nova carreira sob o estandarte do fascismo. Vimos que a cumplicidade entre o socialismo e o pensamento anti-liberal ou mesmo anti-democrático é antiga. Desde a RevoluçãoFrancesa, a direita reacionária e a esquerda socialista compartilha da mesma denúncia do individualismo burguês e da mesma convicção de que a sociedade moderna, privada de fundamentos verdadei ros e prisioneira da ilusão dos direitos universais, estava com seus dias contados. Uma boa parte do socialismo europeu, no século 19, menosprezou a democracia e exal tou a nação: pense-se por exemplo em Buchez ou Lassalle. Por outro lado, no período que precedeu a Primeira Guerra, a crítica comum ao liberalismo chegou mesmo a aproximar do ideário socialista a direita mais radical, ou seja, a mais nacionalista: pois podemos muito bem conceber teoricamente uma economia isenta da anarquia dos interesses privados no interior da estrutura nacional, vinculando com isso os sentimentos anti-capitalistas à paixão nacional. Tal é, por exemplo, a tendência da Ação Francesa em seus anos "revolucionários". Maurras percebe desde cedo que "um sistema socialista puro estaria livre de todo elemento democrático". Ou seja, um tal sistema comportaria a seu ver uma sociedade orgânica, desembaraça o internacionalismo marxista deve permanecer como o inimigo jurado dos nacionalistas. "Mas um socialismo isento do elemento democrático e cosmopolita pode cair tão bem ao nacionalismo como uma luva bem torneada a uma bela mão." A idéia de um socialismo nacional, portanto, não é nova em 1918 ou 1920. A novidade consiste nofato de, logo após o cessar-fogo, ela abandonar sua roupagem letra da para ressurgir em versões populares, como um instrumento pró prio para galvanizar as massas. Antes da guerra, o coquetel socialismo-nacionalismo não é mais do que um licor esotérico sorvido pe los intelectuais. Depois, torna-se um álcool de amplo consumo. Sua atração súbita não é essencialmen te resultado de uma reação de ódio à Revolução Russa, nem de um cálculo para se apropriar de modo espúrio da herança socialista, inte grando-a num programa antibolchevista. Não nego que os ideólogos de ambos os lados tenham efetivamente pensado nisto. Mas a idéia nacional-socialista (ou fascis ta) não é simplesmente derivada. Na verdade, ela extrai sua força da mesma fonte que o bolchevismo vitorioso: da guerra. Como o bolchevismo, ela permite mobilizar as paixões revolucionárias modernas, a fraternidade dos combatentes, o ódio à burguesia e ao dinheiro, a igualdade dos homens e a aspira ção de um mundo novo. Mas ela lhes traça um caminho diferente que o da ditadura do proletariado: o do Estado-comunidade nacional. O nacional-socialismo constitui o outro grande mito político do século. Longe de poder ser reduzido a um uso instrumental na luta contra o bolchevismo -o que ele também é-, o ideário fascista tornou-se tão arraigado na imaginação das pessoas desta época que as elites européias revelaram-se incapazes de limitar seu poder destrutivo.Bolchevismo e fascismo, como vastas paixões coletivas, corporifi caram-se infelizmente em personagens excepcionais: esta é a outra vertente da história do século 20-o que ela tem de acidental-, que se uniu a seu caráter de antemão revolucionário. Pois um traço comum aparenta as três grandes ditaduras da época: seu destino está preso à vontade de um único homem. Obcecada por uma história abstrata das classes, nossa época fez de tudo para obscurecer esta verdade elementar. Como ela quis ver a classe operária por trás de Lênin, e os ditadores fascistas como marionetes do capital! Inúme ros autores, com má-fé ou candor, usaram o que em inglês se chama gem que os bolcheviques faziam de si próprios, submetendo os fascistas, por sua vez, a uma interpretação sem relação alguma com o que haviam expresso. Esta versão letrada do "anti-fascismo" apresenta a vantagem de separar o joio do trigo na peneira da luta de classes, reencontrando na escuridão do século o fio providencial da neces sidade. O problema é que ela não explica o papel espetacular de alguns homens nesta trágica aventura. Suprima-se o personagem Lênin da história, e não há Outubro tro rumo. Quanto a Hitler, se é verdade que, como Mussolini, ele assume o poder em parte graças ao consentimento resignado da direita alemã, nem por isso chega a per der sua desastrosa autonomia, pondo em prática o programa es boçado em "Mein Kampf", do qual foi o único mentor. Na verdade, os três conquista ram o poder destruindo regimes fracos com a superioridade de sua força de vontade, dirigida exclusivamente, com incrível perseverança, para um objetivo único. E o mesmo pode ser dito do quarto ditador, Stálin: sem ele não haveria "socialismo de um só país" nem, por definição, o "stalinismo"! Creio que não há precedentes históricos de uma igual concentração aceitaram de antemão as regras do jogo que os condenariam à derrota. No entanto, uma vez donos do poder, todos o exercem, cedo ou tarde, de modo autocrático. Somente Lênin o assume de acordo com o esquema revolucionário clássico, mas todos o utilizam para pôr em prática sua concepção do "novo homem", mais fiéis a seus devaneios do que aos aliados de ocasião. Sua vontade de dominação cresce e se inebria com as glórias obtidas. Deste modo, não há muito sentido em querer vincular suas ações a certos interesses, grupos ou classes sociais. Ao menos desde Kronstadt, a "ditadura do proletariado" nos moldes de Lênin não tem mais muito a ver com a classe operária -que dirá então do que a ele se seguiu. E o genocídio dos judeus tampouco está inscrito no programa do grande capital alemão. Não há nada mais incompatível com uma explicação do tipo marxista (sem prejuízo do que ela comporta, em outros casos, de verdadeiro) do que as ditaduras inéditas do século 20. O mistério destes regimes não pode ser desvendado por sua dependência em relação aos interesses sociais, masjustamente pela independência assustadora face a tais interesses, sejam eles burgueses ou proletários. Graças a uma ironia da história, o materialismo histórico alcançou sua maior influência no século em que seu poder de explicação é o mais reduzido.O caminho menos acidentado para abordar um problema tão complexo como as relações entre comunismo e fascismo é utilizar o método clássico do historiador: fa zer o inventário das idéias, das vontades e das circunstâncias. A questão pode ser dividida em dois grandes atos, que formam duas épocas distintas: Lênin e Mussolini de um lado, Stálin e Hitler de outro. Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO "Le Passé d'une Ilusion" pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011 231-4555, São Paulo) Texto Anterior: A ILUSÃO DO SÉCULO Próximo Texto: Furet analisa o porquê do fascínio pelo comunismo Índice |
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