São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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O misticismo da forma

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Bastante oportuna a reedição do romance "Avalovara", do escritor já morto Osman Lins. O livro, escrito entre 1969 e 1972, apesar de complexo, foi um sucesso de público, permanecendo, em 1974, por um bom tempo na lista dos mais vendidos.
Em período marketeiro como o nosso, onde se vende gato por lebre, soam como bombas revolucionárias as palavras de Osman Lins, em entrevista concedida à revista "Veja", em 28 de novembro de 1973: "A cultura sempre foi relegada a segundo plano no Brasil. Talvez ressonância da retrógrada colonização portuguesa. Sabe, execro a pobreza. Mas que sentido tem o desenvolvimento sem justiça e sem elevação do espírito?".
O mais curioso é que Lins, nesta mesma entrevista, dizia: "Há um certo ar de ocultismo em 'Avalovara' -os números, por exemplo". Semelhanças? São realmente meras coincidências. O livro foi também recepcionado por críticos relevantes da área universitária (França, EUA etc) e da área jornalística, em alguns dos principais jornais do mundo.
O mais curioso ainda é que não se trata de um romance fácil, que opera no repertório do leitor mais ingênuo e desatento. Antonio Candido, no prefácio à primeira edição, anota: "Como num relato de Borges, o modelo deste livro seria um poema místico em latim, de que se conserva apenas a versão grega na hipotética Biblioteca Marciana de Veneza. O poema fornece o esqueleto de uma geometria rigorosa e oculta, que o autor revela numa espécie de guia metalinguístico do leitor, e que dá à narrativa um movimento espiralado, sem começo nem fim quando tomado em si mesmo". E conclui: "Avalovara representa, na literatura brasileira atual (1973), um momento de decisiva modernidade, porque o autor exerce uma vigilância constante sobre o seu romance, integrando-o num rigor só outorgado, via de regra, a algumas formas poéticas".
O que significa esta modernidade, apontada por Antonio Candido? Significa, a meu ver, tentativa de diálogo com o que mais grandioso se fez no romance moderno a partir do James Joyce de "Finnegans Wake, fora daqui, e a partir de coisas como "Meu Tio o Iauaretê" e "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, numa perspectiva pessoal, onde o tempo passa a ser o da concretude das lembranças, em tom misterioso e intimista.
Lins transcreve, no início do texto, o verso latino palindrômico: "sator arepo tenet opera rotas". Sobre ele, projeta uma espiral, que passa pelas letras dos versos. Cada uma das letras determina a sequência e alternâncias das tramas narrativas.
"Avalovara" é um livro paradoxal: se inscreve, formalmente, embora já de modo um pouco tardio para a época, numa tradição de vanguarda, mas sua linguagem, suas palavras, são até certo ponto "passadistas". O livro foi escrito num português escorreito, com ordem subordinada (longe, portanto, da frase rápida e curta de certa vanguarda), exalando melancolia. Talvez aí, nesta contradição, resida sua importância para o romance brasileiro.
Há trechos muito enxutos, penetrantes: "Os relógios, escreve J.H., têm estreita relação com o mundo e o que representam ultrapassa largamente sua utilidade. Desde a origem, opõem ao eterno o transitório e tentam ser espelho das estrelas". Este trecho tem força poética suficiente para sintetizar os termos do romance. A oposição entre o eterno e o transitório.
Leia-se (outro trecho): "Acelera o carro ainda úmido da neblina noturna, dá a volta pela praça Roosevelt assustando os pombos, os sinos da Consolação vibram solenes na bruma da manhã e ela ri. O calçamento lavado cheira a peixe, a bagaço de laranjas". Aqui, São Paulo, de manhã, com transitórios pombos e "sinos que vibram", numa linguagem quase tardo-simbolista. Estas contradições entre alto e baixo, pobreza e riqueza, entre um Brasil arcaico e um que tenta, sem justiça e elevação de espírito, se modernizar, são o tema e as tensões de "Avalorara".
O livro traduz num momento (anos 60) no qual a cultura brasileira dialogava com o que de melhor havia no mundo, de um Borges a um Cortázar, de um Godard a um Antonioni.

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