São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Uma história cartesiana da música universal

LORENZO MAMMÍ
ESPECIAL PARA A FOLHA

É preciso uma certa coragem para escrever uma "História Universal da Música", nem que seja uma história de divulgação. Hoje, a especialização é tamanha e os conhecimentos são tão diversificados que um pesquisador de músicas étnicas tem dificuldade em dialogar com, digamos, um especialista em Bach. Não utilizam mais a mesma linguagem, inclusive porque a definição da música se tornou muito mais ampla do que antigamente: são música o rock e a sinfonia, o jingle e a experimentação eletroacústica, o "om" budista e o "rap" novaiorquino.
Candé utiliza um esquema clássico: definição da música, culturas extra-européias, antigas civilizações do Egito e do Oriente próximos, e assim por diante, até o século 20, ao qual é dedicado um espaço bastante amplo, mais de um quarto do total.
O grande interesse pela música contemporânea é a novidade mais evidente em relação às histórias tradicionais. Há outras, que Candé aponta desde as premissas: a música é interpretada como um sistema de comunicação, que põe em contato produtores, instituições culturais e público.
O objeto do livro são portanto as diferentes configurações desse sistema. Coerentemente com esse ponto de vista, Candé tenta contar a história da música dosando musicologia (ele próprio é um especialista em Barroco), antropologia e um pouco de semiologia -uma mistura que tem um sabor décadas de 60-70. De fato, o livro é daquela época.
É bom deixar claro: num país onde os livros de referência musical, até para o estudante universitário, ainda são os velhos manuais de Mário de Andrade e Otto Maria Carpeaux, os dois volumes de Candé marcam um grande progresso. São bem mais sofisticados, atualizados e completos do que o que estava em circulação até agora. As ressalvas que seguem são mais instruções para o uso do que críticas.
Em primeiro lugar: a passagem da descrição dos sistemas culturais para o julgamento da obra individual é quase sempre forçada, às vezes pobre. Lendo o capítulo sobre Mozart, por exemplo, não avançamos em nada na compreensão de suas obras. A excelência delas é considerada um dado de fato, quase um artigo de fé.
Mozart, segundo Candé, não teria subvertido nada, mas apenas dominado com segurança e gênio extraordinários a linguagem existente. Portanto, diversamente de Haydn ou Beethoven, não teria modificado o curso da história musical. Acho discutível, mas a culpa não é apenas de Candé: essa visão decorre da interpretação da obra de Mozart como algo milagroso, imaculado e fora da história, que é um vício comum na nossa cultura musical.
Um outro problema é que a ordem de exposição do livro é mais antiga do que a forma como cada item é abordado. No começo do século, separar todas as músicas extra-européias, de um lado, e a música ocidental, de outro, era bastante óbvio, porque esta era considerada algo absolutamente diferente e original.
Hoje, o quadro é mais nuançado, e há pelo menos três culturas que devem ser consideradas como fundamentais para a nossa música: a greco-romana, a hebraica e a árabe. Seria preciso estudar uma forma de exposição que permitisse salientar os intercâmbios entre elas.
O autor não tem medo de ser parcial: por exemplo, adora Vivaldi (sobre o qual escreveu um livro), mas detesta Lully. Suas idiossincrasias são até divertidas, porque conferem ao texto um caráter pessoal. Há apenas dois momentos em que a parcialidade de Candé o leva a escorregões graves. O primeiro é a respeito de Jean-Jacques Rousseau. O filósofo revolucionou o pensamento musical, afastando a música das disciplinas matemáticas e aproximando-a à linguagem. Fez isso no tom de sempre, com arrogância e verve polêmica, dando palpites sobre questões técnicas que não conhecia direito. Candé demonstra facilmente que Rousseau estava errado em todos os detalhes, mas não percebe que ele tinha razão quanto aos princípios gerais.
A outra personalidade que o historiador não consegue entender é Cage e toda música que dele deriva. Pensando bem, é natural que Candé, errando o tom com Rousseau, erre também com Cage: os dois não consideram a música um sistema, mas uma postura existencial frente ao mundo. E Candé, apesar da abrangência que confere ao conceito de sistema musical, continua, no fundo, um cartesiano.

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