São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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O cineasta que amava a literatura

A editora Imago lança romance do diretor François Truffaut

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O principal traço que distingue os cineastas da "nouvelle vague" francesa de seus predecessores é terem se formado como intelectuais, mais precisamente escritores, antes de se lançarem no cinema. Aprenderam a fazer cinema não na prática dos estúdios, mas vendo filmes e escrevendo sobre eles nas páginas dos "Cahiers du Cinéma. Seu amadorismo técnico, na lida com a câmera, os atores e a montagem, era compensado pela sofisticação de uma narrativa literária, amplamente apoiada na auto-reflexividade e na metalinguagem.
François Truffaut, o celebrado primogênito dos "Cahiers" de André Bazin, que o protegeu e incentivou como seu próprio filho, é o exemplo acabado dessa regra. Se não tivesse nascido na era da reprodutibilidade técnica, teria certamente seguido a profissão de Balzac, seu escritor predileto, cujo "Eugénie Grandet inspirou a cena final de "O Homem que Amava as Mulheres" e mereceu mesmo um altar em "Os Incompreendidos", o clássico de Truffaut que inaugurou a "nouvelle vague em 1958.
O próprio Bazin, pai da crítica de cinema francesa, teria fatalmente enveredado para o cinema (o roteiro de seu filme de estréia já estava pronto), não tivesse falecido no primeiro dia das filmagens de "Os Incompreendidos".
Enfim: Truffaut é o ponto em que cinema e literatura se dão as mãos, e este "cine-romance", editado pela Imago, com o mesmo título do filme "O Homem que Amava as Mulheres", é a prova disso. O romance nasceu de um filme pronto que, por sua vez, nasceu da idéia de um romance que, ainda, conta a história de um escritor. Podia mesmo se chamar "O Homem que Amava a Literatura", já que o gosto literário e a própria atividade de escritor do protagonista se devem ao fato de não poder ter as mulheres, ou "a" mulher, que realmente ama: sua mãe.
Como bem ressalta Otavio Frias Filho na apresentação do livro, Truffaut usa o novo meio que é o cinema para revigorar o mito de Don Juan, esfacelado pela psicanálise. Libertado pela proposta de puro amador com que se lançou no cinema, Truffaut pôde passar ao largo das dissecações psicanalíticas de um homem que persegue insaciavelmente as mulheres a sua volta, movido pela falha inicial de não ter sido amado pela mãe. Truffaut coloca a relação edipiana como ponto de partida, não de chegada, preservando, assim, o mito em sua integridade. Não se importa de ser de novo autobiográfico e ainda o Antoine Doinel criança de "Os Incompreendidos", enciumado dos amantes da mãe.
"Cada vez que lanço um filme, afirmou Truffaut, a propósito de "O Homem que Amava as Mulheres", tenho a impressão de dizer a mesma coisa, o que de certa forma é verdade, pois trata-se de um tema de filme no qual penso há muito tempo. Essa "mesma coisa"
pode bem ser a matriz literária, que desenvolveu de filme a filme, seguindo à risca a teoria do autor que ardorosamente defendeu nas páginas dos "Cahiers".
E pode ser a multiplicação de uma mesma mulher inatingível, que o expulsava para a solidão da literatura. "É certamente à minha mãe que devo o fato de ter amado tão cedo a leitura", desabafa Bertrand, o herói do cine-romance. "Ela tinha me proibido terminantemente de brincar, me mexer ou mesmo espirrar. Não podia sair da cadeira que me era destinada, mas em compensação podia ler à vontade desde que não fizesse barulho para virar as páginas". Desta situação, progrediu para o "período mais lamentável "de sua juventude, quando a mãe o "deixava sozinho por vários dias para ir encontrar seus amantes".
Decididamente, os livros são um substitutivo amoroso (Truffaut confessou-se espantado ao reparar, durante a montagem do filme, o quanto as mulheres e os livros de Bertrand se excluíam mutuamente). E, se deles o mito sai recuperado, é porque se colam ao autor de forma quase documental, ou melhor: é o autor que se abstrai em livro, ou em filme, já que estes nada são senão o exercício da solidão -"a solidão me levou ao cinema" é a frase que ecoa em "O Homem que Amava as Mulheres" e em tantas outras obras de Truffaut.
Abolir a fronteira entre realidade e ficção, entre autor e obra, era um ideal romântico dos cinemas novos em todo o mundo, mas esse esforço não se verifica, em Truffaut, na forma rebelde ou violenta típica dos anos 60. "Truffaut corresponde ao lado melodioso, harmônico da 'nouvelle vague'", lembra ainda Otavio Frias Filho na apresentação.
Desde o início, Truffaut compreendera a mensagem do Breton da maturidade, que dizia não ser mais possível o escândalo. Sua normalidade engloba uma vasta gama de seres -ou simplesmente todos os humanos. Também sua arte, por sofisticada que seja, não é menos natural do que a própria vida.

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