São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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O PODER REDENTOR DA MORTE

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

Com "Ópera Urbana Zucco", em cartaz até hoje no Sesc Pompéia em São Paulo, a Cia. Cabaret Babel traz a última obra de Bernard-Marie Koltès (1948-1989), considerado um dos maiores dramaturgos franceses deste século.
Apenas por essa iniciativa, o grupo liderado por Beatriz Azevedo e Letícia Coura já mereceria elogios. Mas há outras virtudes a destacar.
A peça original levava o nome de "Roberto Zucco". Baseado em história real, o texto relata o caso de um rapaz que, aos 15 anos, sem razão aparente, torna-se um assassino. Suas primeiras vítimas foram os pais.
Preso em hospital psiquiátrico, Zucco foge. Perseguido pelas polícias da França e da Suíça, mata dois policiais. A caçada termina com sua prisão, na Itália. Sobrevem outra escapada espetacular.
Dessa vez, ele fica horas no telhado do presídio, de cuecas, a fazer exigências e discursos, atravessando entre pavilhões pendurado nos cabos de eletricidade. Dominado, acabou suicidando-se em 23 de maio de 1988, com um saco plástico na cabeça a que acrescentou um nó em torno do pescoço. Não há porque optar entre prisão e liberdade.
A peça é um exemplo da dramaturgia de Koltès, em que a linguagem é seca, rápida, inclemente. O jovem assassino é mostrado com uma face positiva, exaltada pelo próprio personagem: "Os heróis são criminosos. Não existem heróis cujas roupas não sejam sujas de sangue, e o sangue é a única coisa do mundo que não pode passar despercebida".
Tudo na peça parece funcionar ao contrário. O certo é errado, o bem se iguala ao mal. O assassino define-se à namorada como um "agente secreto". Zucco é um anjo redentor, que mata sem se lixar, que não dá a mínima para a vida e a morte.
Mas que vida? Também a vida da Europa atual, condenada à decrepitude: "Eu sou como um trem que atravessa tranquilamente uma pradaria e que nada poderia fazer com que descarrilhasse".
O Zucco da peça sonha com as neves da África, a quem o autor reverencia como uma terra de condenação e esperança. O herói estudava linguística na Sorbonne ("A gente não volta atrás quando se pegou o hábito de ser um bom aluno", diz).
Há em tudo uma expectativa de que escombros da sociedade surja o novo, que parece resultar do abandono, da perda. Vale assinalar que a peça foi encenada pela primeira vez em 1990, um ano após a morte do autor em consequência da Aids e a queda do muro de Berlim.
Como epígrafe do texto, Koltès destaca uma citação da liturgia de Mithra (deus da luz ou o sol numa antiga religião persa): "Depois da segunda oração, tu verás subir o disco solar e verás pendurado nele o phallus, a origem do vento". O sol, "origem do vento" vital, é o símbolo da fertilidade a que o culto de Mithra está associado.
Há uma busca da imortalidade, uma elevação, presente no apego do herói ao telhado acima da prisão. Desta ele zomba, movendo-se com destreza agarrado a fios instáveis.
No final, Zucco sobe ao mesmo telhado em que a peça se inicia. Desaparece na luz. Não se sabe se ele próprio morreu, se encontrou o sol ou se continua sua busca.
Ao contrário do que pode sugerir a trajetória sanguinolenta de Zucco, a peça da Cia. Cabaret Babel chega a ser até leve e divertida. Há, é claro, a presença da morte a todo momento, mas a trama é articulada de tal forma que o clima que prevalece é o de expectativa pelo desfecho, uma suspensão dramática mais atenuada do que a tensão que prevalece em algumas das montagens das tragédias de Shakespeare, por exemplo.
O ator Petrônio Gontijo consegue imprimir uma marca angelical ao seu Roberto Zucco, mesmo em cenas tão execráveis como quando ele executa friamente um rapazinho num parque diante do indiferença da mãe rica, que parecia mais empenhada em fazer crer a todos da excelência do seu Mercedes 280 SE.
A montagem não tem a concisão e a velocidade presentes no texto. Há cenas que parecem supérfluas e chatas. Talvez se pudesse abrir mão de trechos que se passam no cabaré em que a namorada de Zucco vende o corpo.
Quem faz Menina, a namorada, é Beatriz Azevedo. Trata-se de um personagem difícil, indefinido entre tesão e imaturidade, ofuscado pela presença dominadora da vontade de Zucco.
O texto permite excelente desempenho à atriz Magali Biff, que faz a irmã opressora da Menina. Admirável exemplo de hipocrisia familiar, típica personagem de várias faces, castradora e chantagista, cruel e intimidada. Ela é a síntese de vários atributos identificados à moral familiar francesa e sua obsessão por limpeza: "A França é um excelente detergente", elogia a senhora do Mercedes 280 SE.
A montagem de "Ópera Urbana Zucco" faz parte de um projeto mais amplo de divulgação das obras do autor no Brasil, nucleado pelos esforços da própria Beatriz Azevedo, Letícia Coura e a Cia. Cabaret Babel.
Há um ciclo de estudos e leituras, o lançamento de um livro e até a possível vinda do irmão do autor para debates. Espera-se que essas iniciativas resultem na montagem de outras peças desse notável autor, infelizmente ainda pouco conhecido no país, mas que cujas peças mereceram festejadas montagens dirigidas por diretores como Patrice Chéreau ("A Rainha Margot") e Peter Stein.

O Mais! publica quinzenalmente a crítica de teatro

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