São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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Uma poética epifânica da oralidade

JERUSA PIRES FERREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde que encontrei o grosso volume dos "Études de Poétique Médievale" (Paris, Seuil, 1972), percebi que alguma coisa acontecia e que teria a ver com o estudo de nossas literaturas populares/orais. O texto medieval, muitas vezes aprisionado na área da filologia ou da historiografia mais tradicional, apontava aí para uma poética da voz que, em verdade, se insinuava, desde os primeiros trabalhos de Paul Zumthor, permitin
Meu entusiasmo foi tão grande que lhe escrevi, começando um circuito não-interrompido. Em março de 1977, chegávamos juntos a São Paulo, ele como professor visitante, deu curso e dirigiu seminários de pesquisa na Uni
camp. Enfocava os "rhétoriquers", poetas áulicos que, no século 15, desenvolveram um coesoe original exercício poético.
Criou-se a oportunidade para uma fecunda discussão sobre o sistema e a margem, o mundo oficial da cultura e o submundo que irrompe
nos interstícios.Discutiu-se a festa e ainda, os ritos obscenos, os ditos jocosos,
sua recepção cortesã. Pouco tempo depois, publicaria "Le Masque et la Lumière" (Paris, Seuil, 1978), um dos seus mais fascinantes trabalhos, em que liga a aventura de
criação desses poetas às razões e princípios de um século. Neles, a
descoberta da América e o enraizamento de futuras utopias.
Depois dessa primeira visita ao Brasil, passa a se dedicar com insistência às literaturas orais, com a bagagem de um medievalista, mas contando agora com o laboratório
vivo de nossa cultura tão fortemente oralizada, com os textos de poetas populares, cuja atuação era possível seguir de perto, com a riqueza e a extensão de nossa litera
tura de cordel.
Veio com sua mulher, a medievalista Marie Louise Ollier, para a Bahia, ávido de visitar o sertão onde nasci, Feira de Santana, a fazenda Paus Altos. Intensifica então
o percurso pela cultura sertaneja, busca o entendimento de criações
que se assentam num grande lastro comum, naquilo que denominou
"metaconhecimento poético".
Devo dizer que "Cavalaria em Cordel" (São Paulo, Ed. Hucitec,
1979) o estimulou a pensar neste universo como um todo, na teatralidade desta cultura que faz da palavra uma "ocupação de rivais", na diversidade de registros do épico ao paródico, encampados pelo "romanceiro" nordestino.
Pontuou tudo isto num trabalho ("Rev. Critique" 80, Paris,1980), comentando, com entusiasmo, a tese pioneira de Idelette Muzart Fonseca dos Santos sobre o
teatro de Ariano Suassuna e que ele tinha examinado na Sorbonne.
Estavam a caminho formulações básicas para um campo de atuação
que, a partir dele, se firmou em dimensão universal: o dos estudos
se na transmissão da força energética e teatralizante que assumiu como "performance", no sentido bem definido de texto em presença, a ampliação do próprio conceito de texto e de literatura, foram
indispensáveis para se pensar nas literaturas da voz.
Apontando para diferentes graus e modos de ser do texto oral, em
trabalhos como o bem conhecido
"A Permanência da Voz" ("Correio Unesco", nº 10, 1985), seria aproximado naturalmente dos chamados oralistas, como Walter Ong, Ruth Finnegan entre outros,
texto e das energias que o movem, e que terminam por fazer dele, como disse, "uma epifania da voz". "Introduction à la Poésie Orale" (Paris, Seuil, 1983), que estamos traduzindo agora, é um livro que provém desta experiência no Brasil, conforme declarou em muitas das entrevistas que deu. Aí se concentra todo um chão de vi
vências, a experiência vital e humana de um pesquisador que correu mundo, reunindo materiais e, sobretudo, convertendo-se ao "outro", para poder teorizar.
Poderíamos até glosar, dizendo-nos diante de uma "semiose" participante. Nada lhe escapa: das línguas distantes e em extinção (aliás um tema obsessivo em sua
obra mais recente), cuja voz ainda ressoa, às apresentações de roqueiros hoje.
Em julho de 1993, hospedado em nossa casa em Salvador, interessavam-lhe os ruídos do bairro popular, os tambores do Olodum, o disco "Parabolicamará" de Gilberto Gil, que ouvia repetidas vezes, encontrando aí alguns fios para completar sua trama reflexiva sobre a linguagem. "A Letra e a Voz" (Cia das Letras, 1993) traz a
confirmação de alguns pontos de vista. Aí se reúnem o pesquisador arrojado, a erudição espantosa e uma sensibilidade de poeta, os desafios que nos situam em posição de ver, com clareza, aquilo que parecia impossível não ter pensado antes.
Quebram-se limites e somos tomados por uma imperiosa necessida de de revisão.Recentemente numa biblioteca dos EUA, entre as 46 chamadas de
títulos de sua obra, encontrei umtrabalho antigo (Editions Laffont, 1953), que nos oferece grandesatrativos, sobretudo levando em conta a abertura de quem nos diz
que a poesia medieval tem muito mais a ver com a cultura de massas do que com a "literatura".
Trata-se de "Victor Hugo, poète de Satan" em que ele aponta as relações do poeta francês com o espiritismo e com as mesas girantes, tratando de aspectos do sata
nismo e dos ciclos demoníacos, deforma viva e atual.
Preocupado também com a memória e sua contraparte, o esquecimento, escreveu alguns textos fundamentais, como aquele que apresentou num seminário original,
"Políticas do Esquecimento" (Paris, Seuil, 1988), em que transitando de Lotman a Vernant, assenta suas idéias no eixo tradição/transmissão. Aliás, foi nessa
direção que deu a Bernardo Carvalho (Folha, outubro de 89) uma as mais belas entrevistas.
Ao tempo em que buscava a diversidade, perseguia uma grande matriz de linguagem e pensamento, espécie de antídoto à dispersão.
Trabalhando em várias frentes e voltado para essas questões, não pôde concluir o livro "A Linguagem e Babel" (aliás ainda bem jovem escreveu uma novela, "O Po
ço de Babel") que seria o próximo, depois de "La Mesure du Monde" (Paris, Seuil, 1993), um livro alentado em que relacionando tempo/espaço/cultura, retoma o
alcance mais pleno de sua cogitação, e um certo viés junguiano, re
calcado antes por várias razões.
Bem jovem, ele tinha sido seu aluno em Genebra. O interessante é que, vivendo sempre nas mais diversas partes do mundo, a Suíça parece ir marcando, cada vez
mais, sua presença. Cogitando sobre as relações entre ciência e magia, atirou-se a uma extensa pesquisa, reunindo materiais para escrever uma biografia de Paracelso,
também suíço.
Profuso, múltiplo, atuante, creio que sua energia vital e criadora deve permanecer em muitos de nós, que com ele nos relacionamos intensamente. Polígrafo, escreveu mais do que ninguém para falar da voz e de outras linguagens a ela conjugadas, legando-nos uma visada que nos faz passar pelas mediatizações, e alcançar a força

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