São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A universidade em xeque

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE SALZBURGO

"A avaliação e melhoria da qualidade do ensino deve começar pelos docentes, tendo-se em vista seu papel central nas instituições de educação superior. A qualidade dos estudantes também representa um problema, especialmente quando se considera o número de alunos, a diversidade dos programas e os níveis de financiamento." Extraídas de um documento publicado pela Unesco, sobre "Desenvolvimento e Mudança no Ensino Superior" (1995), estas palavras foram repetidas pelo diretor da organização, Federico Mayor, durante uma sessão do Seminário de Salzburgo, há dez dias. Para Mayor, "toda instituição que preserva a mediocridade é uma instituição em decadência". Vale dizer que as instituições de ensino superior precisam passar por reavaliações de sua eficiência e relevância.
Sediado no lindo castelo de Leopoldskron, o Seminário de Salzburgo existe, desde 1947, para promover debates internacionais sobre política, economia e cultura.
Na última sessão (323), financiada pela Fundação Kellogg, foram reunidos nada menos que 72 especialistas de 37 países, para estudar o "Ensino Superior: Estruturas Institucionais para o Século 21".
Três temas parecem resumir as preocupações de educadores pelo mundo afora: acesso, qualidade e recursos. Não há um país que não sinta as pressões do número de alunos batendo, hoje, às portas da universidade. Há casos dramáticos, como o de estudantes negros na África do Sul: aprovados, mas não classificados para a universidade, tomaram o reitor como refém, até garantirem seu direito de assistir às aulas.
Federico Mayor chamou a atenção para o caráter da educação como única forma eficiente de com bate à superpopulação. O aumento de possibilidades de acesso ao ensino deve ser pensado, ainda, de maneira a combater as políticas discriminatórias, seja raciais, seja de gênero -dois terços dos analfabetos no mundo são mulheres.
Uma vez que o ensino superior está sendo pensado desta perspectiva mais ampla, torna-se necessário perguntar, antes de mais nada, se é mesmo a universidade "clássica", a universidade de pesquisa o modelo de instituição mais adequado para as necessidades de hoje. Quem pode dizer se daqui a 20 anos a universidade, como a conhecemos, será ainda a estrutura central de ensino superior? Foi consenso, durante o Seminário, que a instituição superior de pesquisa continuará fazendo seu trabalho -a pesquisa, em si, e uma educação geral, integrada- melhor do que qualquer outra. Mas também foi consenso que a universidade precisa reagir rapidamente às mudanças sociais em curso e imaginar outras formas de organização e de ensino.
Face à diversificação de interesses e ao aumento da massa de alunos, a universidade precisa definir qual é a sua função e encontrar, então, os meios de promovê-la.
Não precisa e não deve se curvar inteiramente às leis do mercado, mas não pode contar, exclusiva mente, com a beneficiência de um Estado providencial.
Estudos sobre a acessibilidade do ensino levam à constatação de que a universidade tradicional não pode ser o único modelo de instituição de ensino superior oferecido à população. Vejamos o caso do Brasil. Um censo do MEC, de 1993, contava 873 instituições de ensino superior no país (25% públicas). Destas, 114 são universidades (50% públicas). Os números impressionam, mas apenas 1,5 milhão de alunos frequentam cursos de graduação, numa população to tal de 160 milhões.
E, no entanto, o Brasil tem se mostrado especialmente pobre de imaginação (ou vontade política) para oferecer outras formas de ensino. Até hoje, não temos um sistema forte de educação à distância, ou uma rede ampla de escola poli técnicas. Em Israel, a Universidade Aberta, virtualmente gratuita, aceita todo aluno que se inscrever nos seus cursos. Mas os exames são rigorosos e a taxa de reprovação chega a 50% no primeiro ano.
Em outros modelos (como o da es cola Thomas Edison, em New Jersey), cada aluno pode se inscrever em qualquer dia do ano e completar o curso sem restrição de tempo.
A universidade não tem campus: funciona pelo correio, pelo telefone e pelo computador.
Talvez seja a hora, então, de abrir o debate, no Brasil, sobre alternativas mais econômicas e democráticas de ensino superior. Isto significaria pensar no papel das novas tecnologias como forma de ampliação e barateamento dos ser viços educativos. Significaria, também, rever a política de bolsas.
Sem desprezar as universidades, que permanecem centros de pesquisa avançada, nosso país necessita urgentemente de outros modelos de educação.
Os norte-americanos falam mui to de uma desejada aproximação entre a universidade e seus "clientes", ou entre a universidade e o "mercado". Nós preferimos falar de "alunos" e de "sociedade", e no direito inalienável à educação concedido a todos os cidadãos. Na prática, a maioria dos cidadãos tem este seu direito alienado.
A globalização do ensino é cada vez mais uma tendência dominante. Mas a regionalização de interesses não é menos decisiva. Este é um dos tantos paradoxos que a nova universidade deve aprender a pensar. No Brasil, isto não significa apenas o livre acesso à Internet, mas igualmente o crescimento de acervos bibliográficos. A pobreza das bibliotecas universitárias brasileiras é um fato escandaloso.
Questões de acesso estão liga das ao problema da manutenção da qualidade. Como assegurar a excelência de uma instituição, quando ela precisa abrigar mais e mais alunos, sempre com os mesmos recursos? Todos os países representados no Seminário têm problemas para avaliar a eficiência das instituições. Todos registram o caráter fortemente corporativo dos professores e a natureza conservadora das universidades, enquanto organizações de trabalho. Embora sublinhando a necessidade de autonomia, todos esbarram na dificuldade de decidir sobre a sua justificação social. Que espécie de responsabilidade tem uma universidade com a população que a sus tenta? E para consigo mesma? Uma história, relatada por Josef Jarab, reitor da Universidade de Palacky, na República Tcheca, serve para ilustrar a complexidade do assunto. Pouco tempo depois da queda do regime comunista, os professores da universidade se viram num dilema.
Até então, os alunos eram obrigados a assistir 40 horas de aula por semana. Não sobrava tempo para leitura. Com a mudança de regime, foi preciso muito esforço para convencer os professores de que 20 horas na sala de aula já se riam o bastante. O fato é que a própria estrutura pedagógica continuava reproduzindo uma circunstância política. Mudar o cronograma significa mudar a própria idéia do que é a universidade.
Talvez não seja demais sugerir que nós, também, mesmo em situações muito diversas, estamos sofrendo de uma considerável estagnação das estruturas de ensino superior. O país mudou, mas a universidade, via de regra, permanece atrelada a um modelo antigo.
No que tange às instituições públicas, ainda não temos sequer regras efetivas para premiar a excelência e diferenciar as escolas umas das outras -requisito básico para estimular a melhoria do ensino.
Cada país terá, afinal, de encontrar a receita para seu sistema de educação. As medidas variam da reforma universitária na Costa Ri ca (redução da burocracia, horizontalização, promoção de uma ética acadêmica), ou das extraordinárias transformações por que passa o sistema público da África do Sul, até outros pequenos, mas não menos significativos gestos que são quase universais: maior atenção às necessidades sociais; favorecimento de laços com o empresariado; multiplicação de disciplinas e meios de estudo; estímulo à interdisciplinaridade; atualização tecnológica; incentivo à integração regional e global. Para cada mu dança, há uma medida de sacrifício, que pesa na balança.
À luz dessas conclusões, é preciso dizer que a perspectiva do ensino superior no Brasil não é rósea. Mas também não é má. O de bate sobre o ensino superior vem se tornando frequente, e assumindo caráter público. Neste contexto, a questão da avaliação já é um foco preferencial da nossa agenda.
O governo precisa botar mais dinheiro na educação; mas só isto também não será o fim do problema. A capacidade de mudança é maior num país como o Brasil do que em outras culturas, mais conservadoras. E não conheço ninguém que não pense que é hora de mudar a universidade.
Nada disto, é claro, terá um efeito verdadeiro sem que se mude o ensino básico e secundário -problema ainda mais difícil. E nada disto pode ser empreendido sem riscos. Mas, como dizia Mayor, em sua conferência, "aceitar só o conhecimento, sem riscos, é quase tão ruim quanto aceitar só os riscos, sem conhecimento".

Texto Anterior: França abre sua única catedral do século 20; Curso de literatura gay e lésbica causa polêmica; Adrian Lyne faz seleção para versão de "Lolita"
Próximo Texto: TRÊS VEZES CINEMA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.