São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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TRÊS VEZES CINEMA

EDUARDO SIMANTOB; JOSÉ GERALDO COUTO

Leia a seguir a conversa entre os cineastas Arnaldo Jabor, Cacá Diegues e Hector Babenco, realizada na produtora de Babenco, HB Produções, nos Jardins, em São Paulo.
(ES e JGC)

Folha - "Lamarca" foi o filme brasileiro mais visto no ano passado. Este ano, temos "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, lotando salas. A produção brasi
leira está dando um novo salto?
Babenco - Sim, "Lamarca" versus "Carlota Joaquina". O primeiro é um filme despossuído de seu contexto ideológico, por ter o
formato de um filme B de ação americano.
Diegues - Fui ver o filme da Carla Camurati. A partir de determinado momento, parei de ver o filme e comecei a observar um espetáculo que há muito tempo eu não via com tanta intensidade, que
é a cumplicidade do público com o filme. O público estava gostando de gostar daquele filme, como que por um sentimento de orgulho.
Jabor - Eu sinto que ele traz algo do "Xica da Silva", que é aquela enorme alegria, aquele descompromisso com a seriedade...
Diegues - Um princípio de carnavalização...
Jabor - Exato. "Carlota" é importante porque não tem compromisso ideológico a priori, nemcom a linguagem, inclusive porque é feito por uma pessoa sem muita experiência. Isso favorece a originalidade, realça o talento. Pois, tecnicamente, o filme não tem contracampo, não tem "quarta parede". O resultado é um filme que per
corre caminhos novos, insuspeitos. Na minha opinião, isso é uma das definições do que deve ser feito em matéria de cinema.
Babenco - Eu não concordo. Eu acho que o cinema deve ser o que ele queira ser e acho que "Carlota" é o filme menos carnavalesco que já vi na minha vida. Ele tem
muito mais a ver com as chanchadas da década de 50.
Jabor - Mas o "Xica da Silva" também...
Babenco - Não, não, não! "Xica da Silva" apresenta um retrato rigorosamente bem filmado, numa situação colonial, onde há um elemento perturbador, uma crioula
aloprada que enlouquece a cabeça de um português careta. "Carlota" é muito mais complexo. Como se disse antes, ele é filmado exclusivamente contra uma parede, sem
lateralidades nem contracampos. O único interesse é registrar uma "mise-en-scène" de forma descritiva. E também não vi, em "Carlota", uma única concessão ao hu
mor, a fim de buscar a simpatia da platéia. É essa honestidade que faz o público ficar orgulhoso de gostar de uma coisa bem feita.
Da mesma forma que eu não acho "Macunaíma" um projeto carnavalesco. É uma linguagem que pertence ao imaginário brasileiro, essa coisa alegórica, bagunçada, desavergonhada, sei lá. Entre o que a Carla Camurati quis fazer e o que ela fez, não há
filtros interpretativos e, nessa ino cência, reside sua força.
Diegues - Mas eu não quis dizer carnavalesco. Eu falei carnavalizador, no sentido de anarquia fantasista da história...
Babenco - Bem, eu sou meio ignorante...
Diegues - Você falou mal do "Lamarca", mas você não acha que ele ainda revela uma certa precisão naquilo que ele quer ser, uma marca de eficiência?
Babenco - Não, eu não fico orgulhoso de ver aquele filme, sendo um tema que me é muito próximo. Eu simplesmente acho que ele ma
nipula uma linguagem de cinema de ação em cima de um roteiro
ideologicamente fraco e que não me comove em nada.
Jabor - Eu acho que é importante a gente falar que essa "crise do cinema brasileiro", junto com a tal da "internacionalização da linguagem", pode nos levar a um certo ecumenismo. Um ecumenismo que mascara uma não-seletividade. Eu sou uma pessoa limitada, então eu tenho preferências, distinções... Neste sentido, acho que, se a
gente tem que fazer alguma coisa importante no cinema brasileiro, temos que fazer uma imagem original de nós mesmos. "Carlota Joaquina" é uma imagem brasileira profundamente original. "Lamarca" não, é uma coisa previsível e já conhecida.
Babenco - Carta marcada.
Jabor - A gente já saiu dessafase de ficar se perguntando como
se consegue fazer um cinema internacional, multinacional ou transnacional. Na minha opinião seletiva, não-ecumênica e não-democrática, deve-se fazer um cine
ma que saia de dentro do país e da gente, e que busque uma não-ideologização. Uma coisa que seja de autor e altruísta, buscando alcançar o público. Senão, a gente fica
naquela dualidade escrota de cinema de arte e de cinema comercial. A gente só se internacionaliza através da originalidade. É aquela velha história: "Seja universal, fa
le da sua aldeia".
Babenco - Desde o "Rei da Noite" que eu só acredito nisso. Na capacidade de você ser fiel a si mesmo, com a generosidade suficiente para querer ser gostado, ter
em seu trabalho algum eco. Folha - E no seu caso, não há um limite nacional, não é? Você foi aos EUA...
Babenco - Não interessa. Os filmes que fiz nos EUA, em língua inglesa, são totalmente disformes. São filmes que não estão dentro da
formatação narrativa do cinema internacional.
Jabor - E o "Brincando nos Campos do Senhor" é um dos últimos filmes brasileiros. É um filme do ponto de vista dos ianomamis, por isso é que foi um fracasso nos EUA. É um filme internacional do ponto de vista dos índios.
Diegues - Mas nessa questão do público, eu devo dizer que não sei o que significa. Para mim, público é uma coisa disforme. Essas palavras, "público", "massas", per
dem cada vez mais o sentido no mundo moderno. Público é uma soma de indivíduos, mas você não consegue ver todos esses indivíduos, então não sabe o que ele é.
Quando vou fazer um filme, não penso no público. Creio que se deva pensar no outro, ou seja, numa pessoa específica: "Será que minha mulher vai gostar desse pla
no?", "Será que o Jabor vai se orgulhar de ser meu amigo depois dever este filme?" (risos).
Babenco - Gozado, eu penso só em mim...
Diegues - Olha, eu acho que existem vários equívocos, e gostaria de deixar uma coisa bem clara hoje. Eu sei que nós três pensamos assim: o cinema brasileiro não é um, são vários. Ele pode ser feito de várias maneiras, alegre, triste, dramático, cômico, urbano, rural, a gente não pode querer transformar o cinema brasileiro num for
mato-gênero. Não existe o mercado, existem os mercados. Alguém quer fazer um filme para entrar na história do cinema, aí faz filme experimental. Mas não é por aí, nós estamos filmando para a vida e para o outro. O cinema não pode prescindir de seus autores e artesãos, pessoas que vão botar sua vida nisso. Mas é preciso lembrar que estilo, coerência autoral, rigor formal etc. são armadilhas burguesas para impedir que o imaginário exploda de uma maneira mais violenta.
Babenco - Essa conversa tem pontos muito bonitos, bem interessantes, mas eu não consigo tirar de dentro de mim um sentimento muito profundo de luto que tenho pelo cinema brasileiro nos últimos dez anos. Sinto, inclusive, que esta é uma conversa entre três mamutes em extinção, tentando daras últimas declarações a respeito de um ofício que não existe mais. Diegues - Não é assim, Hec
tor...
Babenco - Não me venha com euforia carioca, não... O cinema brasileiro está vivendo um momento de grande depressão. Não conseguimos passar da década de 80 para frente.
Diegues - Mas estávamos falando justamente de Carla Camurati...
Babenco - Mas é o único exemplo que surgiu.
Diegues - Eu acho que "Veja Esta Canção" é um filme digno,"Lamarca" também.
Babenco - Mas não representa o cinema brasileiro com a versatilidade e o poder de conflito que nós criamos nas décadas de 60 e 70.
Diegues - Estamos saindo da crise. Nessa saída, você olha para o lado e não vê três mamutes, não. Vê um movimento de curta-metragem sólido pra cacete, de filmes
interessantíssimos. O que está em crise é a produção de longas-me
tragens, por questões econômicas, políticas, financeiras, que não vêm ao caso aqui.
Na França se produzem 150 filmes por ano, mas você não vê 15 bons. Nos EUA, 400 filmes por ano, mas não se vê 40 filmes bons.
No Brasil, se produz cinco; dez por cento disso é meio filme. Você não pode condenar todo filme brasileiro a ser uma obra-prima. Eu não tenho euforia nenhuma, estou há anos tentando fazer filmes.
Babenco - Vamos com calma, no meio de alguns grandes curtas,eu tenho visto uma safra péssima. Detesto esse negócio de brasileiro tendo orgulho pelo Maracanã ser o maior do mundo. Eu lido com a realidade. Não penso minha profissão na terceira pessoa, não penso em mim e no meu ofício numa perspectiva histórica. Eu vivo o
meu presente, e sou hoje uma pessoa magoada. Magoado com a incapacidade de exercermos nosso ofício. Tem sido muito complicado poder exercer tão esporadicamente, com tanta energia que tenho, minha profissão. Falo como uma pes
soa que está sendo desaproveita da pela cultura que assumiu. Quero que isto fique gravado, porque vou dar os melhores anos da minha vida a este país que adotei, o qual já representei, e não estou sendo respeitado em nenhuma das minhas
prioridades básicas como profissional, como homem sério, detentor de um "know-how" e de um arquivo profissional de respeito. Pois não há cinema. Durante o último Festival de Brasília, eu me perguntava se não haveria nenhum jovem curta-metragista com culhões para subir na quele palco e pendurar uma tela preta de luto pelo cinema brasileiro. Ficou todo mundo puxando o saco daqueles três ministros de merda que estavam lá sentados, assistindo uma amostragem de bo
tar vergonha.
Jabor - Aí eu discordo de você. Tem um filme do André Luiz de Oliveira que é extraordinário, chamado "Louco por Cinema".
Babenco - Sim, e o resto? Tudo comida requentada. Tem que se falar o que é. Você, Jabor, está há oito anos sem filmar, não está feliz com isso. Isso tem que ser dito.
Jabor - Mas eu escolhi não estar filmando. É muito importante dizer que nós estamos sendo vitimados por uma desatenção nacional, sim, e que esse novo governo
que entrou aí, que é um governo de intelectuais, tem a obrigação de ajudar a reformar as condições de trabalho do cinema. Realmente as condições de trabalho no Brasil são insalubres. E temos que protestar violentamente, mas com aquele negócio que o
Gramsci dizia, como é que é, "otimismo da vontade e pessimismo das idéias"...
Diegues - "Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade".

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