São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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O sonho de uma arte nova

Os diretores contam como foram conquistados pelo cinema

DA REPORTAGEM LOCAL

A seguir, os diretores falam sobre a gênese de suas carreiras e sobre o Cinema Novo.

Folha - Vocês poderiam contar como cada um chegou ao cinema?
Jabor - Vou começar então. Eu fui fazer cinema por motivos artísticos, literários etc. Quando comecei a fazer cinema, isso era no meio dos anos 60, achava que era possível fazer uma espécie de invasão crítica da cultura de massas.
Injetar um pensamento reflexivo, crítico, nessa cultura que estava nascendo no Brasil, uma espécie de contrabando. Eu ia ser escritor, poeta, teatrólogo, mas acabei
fazendo cinema porque o Cacá mandou (risos). Quer dizer, o Cacá é responsável por tudo...
Folha - Existia a preocupação política antes da preocupação em fazer cinema?
Jabor - Política e cultural. A atração de se fazer cinema era que a gente poderia expandir as idéias para um público muito mais amplo que 10 mil leitores de poesia.
Podíamos atingir milhões de espectadores e, de certa forma, conseguimos isso nos anos 70. Creioque esse é o ponto de partida que une o pessoal do Cinema Novo.
Este pessoal não era cinéfilo no sentido cineclubista do termo, mas era uma turma que queria invadir o mundo da indústria cultural com uma mensagem esteticamente re
novadora e politicamente nova.
Diegues - Pois é, tinha um elemento profético.
Jabor - Profético e também guerrilheiro. Você não fica nem na doçura inocente do poeta lírico, nem na putaria do comércio, mas mistura a poesia com a sujeira do
mundo.
Folha - Então o cinema veio como uma consequência dessa preocupação mais ampla?
Diegues - Eu acho que essas disposições políticas e culturais são verdadeiras, mas são antecedidas por um desejo que não é propriamente ideológico. Eu comecei
a amar o cinema, me entendendo como cinéfilo, fazendo fichário técnico em caderno de escola. Aí, quando eu tinha 17, 18 anos, fui ver "Rio 40 Graus" (de Nelson
Pereira dos Santos), e este filme mexia com a gente, alimentando aquele desejo. Então, tínhamos que justificar este desejo no mundo adulto, politicamente e comer
cialmente, por que não? Tem muita gente que vai fazer cinema para
alimentar sua família. Folha - Não foi o caso, você não foi fazer cinema para pagar
o aluguel, foi?
Diegues - Não, eu fui fazer cinema, primeiro, por amor mesmo,
e também por uma curiosidade pelo imaginário que o cinema libertava, uma capacidade de manifestar algo até hoje difícil de compreender. Porque o tempo passou e a história do cinema se acumulou muito rapidamente. Mas, naquele momento, estáva mos mexendo com uma coisa ainda muito recente. Você tinha 50 tí
tulos que serviam para marcar praticamente todos os momentos importantes do cinema. Havia uma grande possibilidade de invenção, um sentimento que hoje não existe mais. As novas gerações não têm mais este sentimento, como se já
estivessem chegando a uma forma madura, até saturada.
Naquele momento, a possibilidade de você se tornar um profissional de cinema era algo muito longínquo. Enfim, a escolha pelo cinema foi como a escolha de uma
mulher para namorar.
Folha - Mas qual era a essência desse desejo?
Diegues - Eu acho que é a atração do imaginário.
Babenco - Acho que não. Na geração de vocês havia uma formação ideológica que antecede e alimenta a necessidade do desejo.
Jabor - Não, o que eu estava falando no começo é que o cinema
na época era "a arte. A arte do futuro em 1958, 60, com "Cahiers du Cinema", "nouvelle vague" surgindo, o neo-realismo, Antonioni. O cinema de Antonioni eraa grande esperança do mundo de fazer arte de massas e profunda,
um encanto. O que se podia almejar mais do que realizar o sonho da arte mo
derna? O cinema tornou o modernismo subitamente possível durante os anos 60. Começou a se foder nos anos 70, quando este sonho foi pro caralho.
Folha - A opção pelo cinema, segundo Cacá, é uma escolha individual, como a namorada. Mas, como disse o Jabor -"o Cacá me mandou fazer cine
ma"-, a escolha parece ter sido feita a partir de uma experiência coletiva, gregária.
Diegues - À exceção do Jabor e do David (Neves), que eu conhecia há mais tempo, o resto das pessoas que formaram o Cinema Novo eu vim a conhecer na Cinema
teca do Museu de Arte Moderna. Eu não as conheci em reunião política, nem em redação de jornal, mas no único centro de cultura e celebração cinematográfica que ti
nha no Rio. É preciso acabar com esse equívoco de uma vez: o Cinema Novo não foi uma manifestação política de cinema. Foi a manifestação de um cinema que podia ser político, o que é muito diferente. O grito primal é um extraordinário amor ao cinema. Hoje, eu até tento evitar a expressão Cinema Novo, porque de fato o movimento foi uma espécie de modernismo tardio, que chega ao cinema com Nelson Pereira dos Santos e vai até Rogério Sganzerla. Era um momento em que todas as grandes
perspectivas e idéias do modernismo chegam ao cinema brasileiro, assim como acontecia no cinema mundial.
Jabor - Fazer cinema já era em si um ato revolucionário. Era tão novo que tinha um sabor político.
Diegues - É preciso ver isso de um outro ângulo também. Essa su
perestimação do aspecto político do Cinema Novo -que eu não re nego absolutamente, acho que foi até brilhante- impede que se compreenda como essa geração trouxe para o Brasil uma idéia de cinema moderno, inclusive do
ponto de vista técnico. A introdução das câmaras leves, do som direto, das moviolas horizontais etc. Esse modo de se fazer cinema produziu uma linguagem própria. E são essas imagens que ficaram e que vão ficar.
Folha - A formação de Babenco, entretanto, é outra. Quando você começou a fazer cinema, o Cinema Novo já era parte de suas referências?
Babenco - Existia o Cinema Novo, assim como outros cinemas. Eu sou uma pessoa estrangeira no Brasil e o meu estímulo para fazer cinema é uma pergunta que
eu procuro responder a cada filme que faço, a cada nova aventura que invento. Eu talvez tenha feito cinema por achar que este era o único espaço que me restava para
poder expressar minha formação
intelectual.
Havia desde o início uma busca pelo significado do belo, não no sentido babaca, organizado, do belo, mas a procura da arte, da obra não repetida. Talvez minha forma
ção venha de muito mais longe, de um pai que nunca deu certo na vida e que me contava histórias maravilhosas quando eu era menino. Reproduzir esta capacidade dele de inventar histórias, que foi o melhor que ele me deixou, através de filmes -talvez minha motivação primal venha daí. A minha formação é muito mais eclética. Eu não precisava frequentar um centro, um círculo de pessoas excluídas, que se reuniam para saborear um produto novo. Eu tinha esse acesso permitido democraticamente, na Argentina.O cinema de Antonioni, de Bresson, Carl Dreyer, o cinema húnga
ro, japonês, passavam normalmente nos cinemas, junto com filmes da Doris Day e bangue-bangue. Em uma mesma tarde, lembro-me de ter assistido "Vera Cruz" e "Sétimo Céu", e não era um cineclube onde se ia buscar uma linguagem cifrada. Na Argentina, todo mundo via Bergman, Antonioni. Em 1960, eu não sabia que havia um cinema de arte e um outro, comercial. Eu absorvi todas as informações de forma massiva.
Folha - E você já pensava em fazer cinema?
Babenco - Desde os 15, 16 anos de idade. Eu não tinha acesso a um
grupo de pessoas que compartilhasse comigo esse interesse, porque tal interesse se compartilhava com quase todo mundo. Então, não havia este sentido reclusivo da
obra de arte ser diferenciada. Para mim, o cinema foi uma questão muito mais existencial do que de desejo. Foi uma necessidade com pulsiva de tentar transferir à tela o meu sonho. Eu nunca soube de ideologias, de tendências. O meu desejo nada tinha de profético, de querer interferir na cultura de massas, por exemplo. Eu
sempre achei que para aquilo que eu queria dizer havia alguém que gostaria de ver e ouvir. Lembro-me que, quando Glauber (Rocha) foi ver "Lúcio Flávio", me chegou uma informação de terceiros de que ele dizia que era o primeiro filme americano feito no Brasil. Uma observação muito simpática. Eu fiz este filme como um estrangeiro recém-chegado ao Brasil. Cheguei a atrasar as filmagens de "Lúcio Flávio"
porque não tinha saído minha naturalização. Eu queria ser brasileiro para poder fazer um filme brasileiro, pois achava que, como estrangeiro, não tinha este direito.
Era parte da minha loucura e, obviamente, bebia das fontes do cinema brasileiro.
Sempre me sentia meio excluído de uma espécie de grande "Baile da Ilha Fiscal", que era o grupo do Cinema Novo no Rio, ao qual não tinha acesso por morar em São
Paulo e por não ser atrelado a uma forma de pensamento que, hoje vejo, tinha sua razão de ser e uma raiz no crescimento social do país, misturada com a visão de que fazer cinema era possível.
Folha - Ao contrário desta visão eclética do Babenco, sem preconceitos contra determina dos tipos de cinema, o grupo do Cinema Novo os tinha de forma
bem marcante, não?
Diegues - Mas ele se referiu ao Glauber, não ao Cinema Novo.
Babenco - Lembro das dificuldades que tive com o Lauro Escorel (diretor de fotografia de "Lúcio Flávio), que passou o filme inteiro sem falar comigo, porque
achava que eu estava fazendo um filme de mercado, comercial, enquanto eu achava que estava fazendo um filme sobre a realidade brasileira, que não era tocada pe
los meus compadres.
Diegues - Acho que há uma superestimação mítica do Cinema Novo como um todo. Ele foi um grupo, mas não uma escola, nem um estilo de se fazer cinema. Por exemplo, essa frase do Glauber poderia ter sido dita sobre "Xica
Emílio (Sales Gomes, crítico de cinema) costumava dizer que Glauber era um profeta e o dever do profeta é profetizar, e não acertar. Muitas vezes o Glauber errou.
E ele errava onde se excedia em seu radicalismo para poder provocar alguma coisa. E sempre que errava, estava acertando mais ainda, porque provocava, senão uma po
lêmica, uma reflexão sobre o que estava acontecendo. Quer dizer, considerar o Cine
ma Novo uma coisa só é confundir, por exemplo, o realismo social de Nelson Pereira dos Santos com o intimismo do Paulo Cesar Sarraceni, o barroquismo delirante
lítica.
Folha - Mas quanto àquela questão de sectarismo no Cinema Novo, baseada em queixas de pessoas que se sentiram marginalizadas ou excluídas?
Diegues - Isso não existiu.Quem quisesse trabalhar, que fosse à luta.
Jabor - Babenco se sentiu excluído e foi à luta...
Babenco - Não me sentia marginalizado. Eu gostaria de ter participado de um movimento, porque é enriquecedor fazer parte de uma geração de pessoas que pen
sam diferente, mas são unidas por uma paixão comum. Eu estava numa outra cidade e tive que inventar meu caminho. As pessoas que se dizem excluídas de um prato de sopa do Cinema Novo são pessoas recalcadas.
Diegues - O Cinema Novo era um grupo de amigos que bebiam juntos, que iam ao cinema juntos, que namoravam as mesmas moças, que não tinham uma fronteira
definida. Esse exercício de dizer quem era e quem não era do movimento foi feito mais pela imprensa que pelos próprios cineastas. Quem, inclusive, inventou o nome
Cinema Novo foi um crítico, o Eli Azeredo.
Jabor - Hoje é nosso grande amigo.
Diegues - Pois é, hoje é nosso amigo. Ele não era contra o Cinema Novo, depois ficou contra, agora não está contra de novo.

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