São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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A ideologia brutal

DA REPORTAGEM LOCAL

Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e Hector Babenco falam sobre o efeito do movimento
militar de 64 sobre toda uma geração de artistas e sobre a opressão das "patrulhas ideológicas".

Folha - Onde nós podemos observar a ruptura entre as motivações de se fazer cinema nos anos 60 e 70 e a postura mais realista que veio a seguir?
Jabor - Antes de mais nada, eu acho que nós, que saímos do Cinema Novo, fomos culpabilizados pela geração posterior como se fôssemos responsáveis por uma
mudança histórica e econômica que houve no Brasil e que prejudicou o cinema já nos anos 60 e início dos 70. Fomos rotulados de muitas coisas em nossa busca por
um pensamento mais alegórico. Eu acho que a importância de um filme como o "Lúcio Flávio", por exemplo, se dá no ingresso forte do realismo no cinema brasi
leiro. Tirou o excesso paródico. Isso ilumina uma dialética que existe no cinema brasileiro, não no Cinema Novo, entre desejo e comércio, desejo e público.
Meu primeiro filme, "A Opinião Pública", é intensamente político, sem nenhuma preocupação de público. Quando fui fazer "Pindorama", meu primeiro filme de
ficção, tinha medo de filmar. Eu tinha um assistente supercastrador, dominado pelo esteticismo da época (Sérgio Santeiro), que achava que não podia ficar cortando. Ti
nha que fazer tudo em plano-sequência, ele achava que o corte era
coisa da direita, manipulador. O filme foi um fracasso pavoroso, fiquei com um enorme trauma. Não sabia filmar ficção, a culpa era minha se me deixei levar por
um culturalismo narrativo. Quando fiz "Toda Nudez Será Castigada", fiz para mim, foi uma grande libertação. Estava fazendo um filme emocional com um autor con
siderado de direita fascista, Nelson Rodrigues. Fiz grande sucesso de
público e fui atacado inclusive por pessoas do Cinema Novo. É claro que eu tinha que acabar tendo um preconceito contra este ideologismo. Foi com filmes como
este, e depois "Xica da Silva" e "Lúcio Flávio", que esta postura começou a se dissolver. A dialética entre mundo sonhado e real começou a se bater quando, na década de 70, não dava mais para viver só de sonho. Você tinha que ancorar sua imagem no mundo real. Babenco - Naquela época, eu acabava de chegar ao Brasil e era todo "Alegria Alegria", tinha aquela imagem de Caetano e Tropicália na cabeça, e acabei sendo execrado por meus amigos de esquerda em São Paulo. Havia então
uma ideologia brutal, que exercia um peso enorme na cabeça e na capacidade de trabalho.
Jabor - O patrulhamento já existia inserido na cultura brasileira. Foi até o Cacá que cunhou essa expressão, "patrulhamento ideológico", quando pegaram "Xica da
Silva" e disseram que era um filme contra os negros e de direita, contra a história brasileira. O Cinema Novo, ao tentar penetrar o público, tinha uma atitude não-ideológica, democratizante. E as críticas feitas ao Cinema Novo são ideológicas, essas sim.
Diegues - Olha, eu não estou aqui para explicar o passado. Eu acho isso importante, sim, mas é importante a gente também dar a dimensão do que acontecia na época. Eu fiz "Xica da Silva" na mesma época que o Babenco fez "O Rei da Noite", e nós sofremos da mesma maneira as consequências do clima da época. Imagine uma geração de jovens artistas e intelectuais cheios de sonhos e utopias, acreditando que o Brasil ia mudar amanhã de manhãe que ia ser o mais belo país do mundo, com a cultura mais original e salvando a civilização da merda em que ela se encontrava. De repente, isso não acontece, os militares tomam o poder, botam todo mundo na cadeia e o país é dominado, primeiro, por um fascismo implícito, depois explícito.Isso causou muita infelicidade. É preciso levar isso em conta, senão estaremos falando de monumentos históricos, e não de pessoas. Essa infelicidade gerou um extermínio de grande parte de minha geração.
Se não foi um extermínio físico, certamente foi artístico. Todos nós aqui conhecemos pessoas que ficaram no meio do caminho e que talvez fossem hoje cineastas melho
res que nós três e de que outros cineastas que existem no Brasil. Esses cineastas acabaram sendo vítimas de uma extraordinária esquizofrenia, dizendo "já que o
mundo não é o que eu quero que seja, eu vou criar meu próprio mundo, e foda-se o real". Daí, surgiram esses filmes, que excluíam o mundo em volta e o Babenco teve um papel fundamental em explodir isso. Ele veio de fora dessa cultura e se comportou
com naturalidade. Mas Jabor, Walter Lima Jr., eu e outros, tivemos uma enorme dificuldade em produzir essa explosão, pois a infelicidade era muito grande e havia
ainda um certo compromisso com os companheiros de geração.
Jabor - Eu não entendo onde você quer chegar...
Diegues - O meu ponto é que o patrulhamento surge no momento em que, por circunstâncias diversas, somos assolados por uma síndrome de ditadura. Alguns artistas brasileiros se comportam como se ainda houvesse censura, como se
ainda estivéssemos no mesmo regime de 20, 30 anos atrás.
Babenco - Eu sempre me perguntei quando a censura começou
a abrandar e o modelo militar estava minguando, por que o brasileiro tinha sido mais criativo durante o regime militar do que durante a abertura. Onde estavam todas as
peças de teatro, os livros de poesia, os roteiros engavetados perante a impossibilidade de se trabalhar com a censura. Não quero parecer reacionário, mas é só ver os filmes que fiz na época da ditadura para entender que eu estava, sim, atrelado ao social-brasileiro, como em "Lúcio Flávio" e "Pixote". Estes temas
não foram tocados com luva de ginecologista, eles foram colocados na massa e nunca imaginei sequer a possibilidade de um governo totalitário barrar meu desejo.
Jabor - "Pixote", aliás, quando foi lançado, foi considerado por muita gente do cinema brasileiro como um filme realista, no sentido careta da palavra, como se
fosse um filme naturalista, sem distanciamento crítico. Mas, passados esses 15 anos, verifica-se que a força e a modernidade de "Pixote" ficaram justamente por
que o filme não era ideológico.
Babenco - Foi muito difícil para a comunidade cinematográfica
aceitar a idéia de que o povo gostava do nosso trabalho. Pois, apesar de haver uma ideologia tácita,ela não era expressa, não era dita para fora. Eu sou um homem de ação, não um ideólogo. Procurava pessoas para discutir o fazer cinema, não o que é cinema. O que me incomodava na época era que todo filme vinha acompanhado de um discurso anterior, que era uma espécie de cartilha de
entendimento do filme. Foi também muito difícil para toda uma imprensa brasileira, que vinha de dez anos de censura, entender, assim, como gerações mais novas, o
que significava para nós acabar um filme, ter que lidar com aquela entidade concreta, porém abstrata, chamada censura, e como se estabeleciam os diálogos, através de despachantes, reuniões, uma coisa kafkiana. E se faziam filmes que arrebentaram a boca do balão eque o povo foi ver. Uma demonstração de empatia que eu só via
com o Chacrinha na televisão.
Jabor - Ele está falando de cinco, seis milhões de espectadores.
Babenco - Isso depois que Chacrinha vira "cult", que ele vira referência pela desordem. Eu adorava aquilo que ele falava, algo como "eu estou aqui para desorgani
zar, e não para ordenar". Sempre achei que arte não se faz com ordem, nem com ideologia. Matemática se faz com ideologia.
Costa-Gavras (cineasta grego, autor de "Z") fez trabalhos que são equações, teoremas para provar alguma coisa. Eu sempre tive uma visão de arte, e de cinema,
muito mais anárquica e subliminar, onde o inconsciente do diretor se transmite através da figuração das histórias que ele está contando. A temática do Nelson Rodrigues
não é vivenciada dentro do Jabor, não faz parte de sua formação,
mas a opção dele como homem adulto é cair de boca na dramaturgia dele. Ninguém sabia o que ia sair, ninguém tinha ainda entrado
Quando estourou, ele sabe o que padeceu. Eu padeci menos com meus sucessos, porque foram muito grandes. Eu não sei o que é ter um filme que não tenha público. É uma dádiva. Eu só vim a saber isso com 45 anos. E eu não vou esconder a necessidade real de todo criador de ser querido pelo trabalho que fez. Aquele que diz
que está pouco se importando com o que as pessoas vão dizer...
Diegues - Ou é mentira ou é doente.
Babenco - Neruda dizia: "não há poeta anônimo". Você escreve para publicar.
Diegues - Eu só queria colocar a questão dos equívocos na trajetória do cinema brasileiro, que foram também enriquecedores. Um dos fatores de bloqueio de alguns cineastas foi a noção de cinemas nacionais portadores de um formato próprio. Creio que esta idéia já está superada no mundo todo.Creio que só nos libertamos dis
so a partir dos anos 70 e, atenção, temos que tomar o maior cuidado com isso, sobretudo neste momento de aparente recuperação do cinema brasileiro, porque não existem mais cinemas nacionais.
Babenco - Eu acho que há bons filmes e maus filmes.
Diegues - É evidente, e eu estou à vontade para falar disso porque fiz filmes que foram retumbantes fracassos de bilheteria e outros que foram grandes sucessos. Mas, no
fim, é tudo igual, pois quando você se debate com o que está criando, o sentimento é o mesmo. É importante ter em mente asduas possibilidades de um filme-afinal o que existe são bons e maus filmes- e nós temos obrigação de fazer bons filmes, mesmo que, num primeiro momento, eles tenham poucos espectadores.

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