São Paulo, domingo, 16 de abril de 1995
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Terra em transe

CRISTINA ZAHAR E CLÁUDIA GONÇALVES

Tempestades no Sudeste do Brasil e na Califórnia. Secas atípicas na Austrália e América Central. Surpresos com as mudanças, cientistas investigam o comportamento caótico da natureza, descobrem novos efeitos da atividade humana sobre o equilíbrio do planeta e delineiam um futuro em que o descontrole climático pode ser rotina
Por Cristina Zahar e Claudia Gonçalves
Um homem está parado à janela do apartamento. Observa o movimento. Ele transpira muito, o termômetro aponta 50 graus. Seus olhos ardem com a fumaça dos carros. Dentro ou fora do apartamento, o ar quente é o mesmo: insuportável. Na TV, o noticiário das 20h alerta para o calor excessivo e o aquecimento do mar. "Milhares de espécies marinhas estão ameaçadas e o derretimento das geleiras pode inundar cidades costeiras em todo o mundo", diz o locutor.
A cena dá um roteiro de ficção. Mas também pode ser premonitória, caso um coquetel perverso de alterações no clima e na temperatura esteja mesmo -conforme alguns cientistas- conduzindo a Terra para uma era de catástrofes cotidianas.
Na reunião realizada no mês passado, em Brighton (Reino Unido), sob o patrocínio da Organização Meteorológica Mundial, concluiu-se que o El Niño (aquecimento das águas do Pacífico central) vem ocorrendo todos os anos desde 1990, o que é inédito, pelo menos neste século. O normal é o fenômeno surgir a intervalos que variam de três a cinco anos.
Apesar de não ser responsável pelo aumento de temperatura, o El Niño (leia texto ao lado) causa bastante estrago. Aumenta o volume de chuvas em certas regiões do mundo e provoca seca em outras.

As principais consequências do El Niño hoje são a alteração da vida marinha na costa oeste dos EUA, do Canadá e no litoral do Peru; o aumento de chuvas no sul da América do Sul e sudoeste dos EUA; secas no Nordeste brasileiro, centro da África, sudeste asiático e América Central; erosões e tempestades tropicais no centro do oceano Pacífico.
O professor Pedro Dias, do Instituto Astronômico e Geofísico (IAG) da Universidade de São Paulo, explica que a alteração na temperatura do mar acaba afetando a atmosfera, porque as nuvens tendem a se formar onde a água é ligeiramente mais quente. Com isso, a precipitação que costuma ocorrer mais no oeste do Pacífico passa para a parte central e leste. Onde ocorre muita chuva há liberação de energia e ela é dispersada na atmosfera, atingindo até regiões remotas.
É cedo para dizer se o El Niño veio para ficar, reeditando o estado "normal" que assolava a Terra há uns 3.000 anos. Jerry Bell, meteorologista do Centro de Análises Climáticas do National Weather Service dos EUA, acredita que é improvável. "Se acontecesse, seria uma catástrofe, já que haveria alterações no clima e na temperatura em todas as regiões do mundo".

Simulações realizadas na França prevêem um aquecimento de 2ºC a 5ºC na temperatura média da Terra, nos próximos 50 anos, se a quantidade de gás carbônico na atmosfera duplicar no caso de duplicação da quantidade de gás carbônico na atmosfera. O CO2 é a principal causa do efeito estufa, responsável pelo aquecimento do planeta.
A temperatura global da Terra subiu 0,25ºC nos últimos dez anos contra 0,2ºC a 0,3ºC nos últimos 40 anos. De acordo com o relatório anual sobre clima divulgado no último dia 12 de janeiro pela Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera, órgão do Serviço Nacional de Temperatura dos EUA, as temperaturas globais observadas entre março e dezembro do ano passado foram as mais altas desde 1951. Entre os motivos, a ocorrência do El Niño, o efeito estufa e o fim da erupção do vulcão Pinatubo, na Indonésia, em 1991.
No Brasil, o El Niño se manifestou para valer no final de janeiro. Os fãs dos Rolling Stones que o digam. Foram literalmente açoitados por uma chuva torrencial durante seis horas consecutivas, no primeiro show da turnê Vodoo Lounge em São Paulo, dia 27 de janeiro. O aguaceiro só deu trégua quase um mês depois, em 21 de fevereiro.
Foi provocado pela formação de um vórtice ciclônico (redemoinho que leva umidade do oceano para o continente) sobre o Nordeste, que impediu o deslocamento de nuvens úmidas estacionadas sobre Sudeste, Sul e Centro-Oeste do país. A chuvarada engolfou, num verão atípico, pessoas, ruas, estradas, carros e arruinou as férias de muita gente. Choveu tanto em fevereiro em todo o país -445,5 milímetros- que o recorde de 1970 (416,2 mm) foi pulverizado.
A dúvida continua sendo o porquê de o El Niño se manifestar com tamanha frequência. "A grande pergunta hoje é se essa anomalia é decorrente da variabilidade natural do clima ou se já é uma manifestação inequívoca do efeito estufa", diz o professor Dias.
Para Jerry Bell, o El Niño está onde sempre esteve. Faz parte do eterno comportamento caótico da atmosfera e o efeito estufa não é responsável por sua maior incidência.
David Cullum, climatologista do Departamento de Meteorologista do Reino Unido, discorda. Segundo ele, é provável que haja relação entre o aumento da temperatura e o aumento das chuvas provocadas pelo El Niño em regiões como o Sul do Brasil, a costa oeste dos EUA e o sul da África.
Tudo ainda é muito imponderável quando o tema é o clima. Sobre as chuvas que causaram enchentes na Europa ocidental em janeiro, por exemplo, não é possível afirmar com certeza se elas foram provocadas pelo El Niño ou o efeito estufa.
Serge Planton, responsável pelo Grupo de Meteorologia de Grande Escala da Météo-France, diz que no ano passado também choveu acima da média. "Há situações recentes pouco habituais, mas na escala climática um período de cem anos é curto", ressalva.
Os cientistas também evocam a ação dos vulcões na tentativa de explicar as variações do clima. As erupções lançam muita poeira na estratosfera. Composta basicamente por sulfatos, essa poeira provoca o resfriamento da Terra, uma espécie de efeito estufa ao contrário.
Segundo Pedro Dias, o equilíbrio entre CO2 e sulfatos na atmosfera é a peça-chave que mantém a estabilidade do clima. Os sulfatos, substâncias derivadas do enxofre, também são produzidos pela atividade humana através da queima de petróleo.
A reunião internacional sobre o efeito estufa, em Berlim (leia texto à pág. 14), deveria ser decisiva para o futuro do clima no planeta. A meta é reduzir até o ano 2000 as emissões de CO2 aos níveis de 1990, para evitar o superaquecimento da Terra.
Para Cintia Uvo, meteorologista do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) de São José dos Campos, "o efeito estufa é bem mais danoso do que o El Niño, porque é provocado pelo homem. A emissão de poluentes tem que ser controlada para que a situação do clima melhore."

* COLABORARAM DANIELA ROCHA (NOVA YORK); ROGÉRIO SIMÕES (LONDRES); E ANDRÉ FONTENELLE (PARIS)

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