São Paulo, terça-feira, 18 de abril de 1995
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Biografia traz imagens de Clarice Lispector

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

Obra: Clarice: A Vida que Se Conta
Autora: Nádia Battella Gotlib
Páginas: 460
Preço: R$ 29,90
Lançamento: 28 de abril

A editora Ática lança, no próximo dia 28, "Clarice: Uma Vida que Se Conta", de Nádia Battella Gotlib, professora de literatura brasileira na USP.
A obra é uma minuciosa reconstituição da vida da escritora Clarice Lispector, que nasceu na Ucrânia, mas viveu no Brasil, escrevendo livros como "Perto do Coração Selvagem e "A Paixão Segundo G.H., até sua morte, em 1977.
A biografia -concebida como tese de livre docência defendida em 1983- não se limita, porém, a acumular fatos biográficos da escritora. "É uma biografia literária, diz Nádia Gotlib, destacando as reciprocidades existentes entre a vida e a obra de Clarice Lispector. Leia, a seguir, a entrevista que a autora deu à Folha.

Folha - Apesar de ser hoje uma moda editorial, a biografia é um gênero que não tem muito prestígio no meio acadêmico. Como foi fazer uma tese universitária na forma de biografia?
Nádia Battella Gotlib - Procurei resolver essa questão respeitando os territórios específicos de vida e obra. Seria impossível fazer uma biografia da Clarice Lispector ignorando a leitura de seus livros. E o interessante na biografia dela é essa inter-relação. Optei por uma espécie de ponto e contraponto, alternando dados biográficos com análises literárias, sem estabelecer uma relação de subordinação de um universo a outro.
Folha - Você dá vários exemplos de como Clarice "inventou" sua própria personalidade. Como é fazer a biografia de uma pessoa que se transformou em objeto de ficção?
Gotlib - Esta foi a maior dificuldade. A obra tem uma questão fundamental: problematizar a relação entre verdade histórica e imaginário ficcional.
Vejo a vida da Clarice como um progressivo e cada vez mais intenso processo de afundar na ficção, de se ficcionalizar. No final da vida, ela já se enxerga assim. Na última "cena" da biografia, quando, no hospital, após uma hemorragia, é impedida de sair do quarto, Clarice diz à enfermeira: "Você matou meu personagem".
Isto também atingia pessoas que viviam com ela. Seu marido (o diplomata Maury Gurgel Valente), por exemplo, foi uma espécie de presa desse enredamento na ficção. Poucos meses depois de se separarem, em 1959, ele escreve para ela tentando uma reconciliação. Nas cartas, se dirige a Clarice como Lídia ou Joana, e se refere a si mesmo como Otávio -como se ambos fossem as personagens de "Perto do Coração Selvagem".
Folha - A falta de limites entre realidade e ficção apareceu também na pesquisa documental?
Gotlib - Sim, isso ocorre já a partir do documento histórico, pois os documentos, que deveriam trazer "a" verdade, traziam várias versões de um fato.
Há um exemplo curioso: Clarice mentia a idade. Em diferentes momentos, ela declara ter nascido em 1920, 1926 e 1927. Mas outras fontes indicam também 1921 e 1925 -data adotada pela crítica. Folha - E como nasceu o interesse pela biografia de Clarice?
Gotlib - Comecei a ler Clarice profissionalmente a partir dos anos 70, em cursos de pós-graduação que dava na USP, e notei que havia lacunas muito grandes sobre dados da vida da escritora.
Posteriormente, a convite de Benedito Nunes, escrevi o ensaio "Um Fio de Voz: Histórias de Clarice", para a edição crítica de "A Paixão Segundo G.H.", publicada pela coleção Archives, da Unesco. Enquanto o escrevia, ficou evidente a falta de um trabalho de natureza biográfica sobre a escritora.
Folha - Quais as maiores novidades que você encontrou?
Gotlib - As partes mais originais são sobre a infância e sobre a correspondência de Clarice com escritores como Rubem Braga e Fernando Sabino, durante os 16 anos em que morou no exterior com o marido diplomata.
O capítulo sobre sua viagem da Ucrânia para o Brasil foi construído a partir de uma pseudoficção de Elisa Lispector, irmã da escritora -já que esta fala muito pouco sobre o episódio e sobre sua infância no Recife. O livro se chama "No Exílio" e é um romance que evoca as raízes judaicas da família.
Folha - Sua obra fala de algumas experiências políticas de Clarice. Como conciliar esse engajamento com a ficção introspectiva da autora?
Gotlib - A literatura da Clarice está marcada por posições políticas não tradicionais. Um livro muito político é "A Hora da Estrela", que pode ser visto como continuação de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos: neste, há a partida do sertão e naquele a chegada à cidade. Além disso, há todo um questionamento da condição humana, da condição social. Mas ela não tinha rótulo. Pelo contrário, houve épocas em que sua literatura era considerada "alienada.
Folha - Seria possível dizer qual é o livro menos autobiográfico de Clarice?
Gotlib - Não saberia dizer. Até na Macabéia (personagem de "A Hora da Estrela"), a nordestina pobre com nome judeu, pode-se ver Clarice. Mas não sei se vale a pena procurar Clarice aqui ou ali. Acontece com ela o que acontece com Fernando Pessoa. São várias Clarices espalhadas. Clarice é o conjunto disso tudo. A Clarice pessoa pode estar em todos esses lugares -como pode não estar em nenhum, na medida em que todos são metáforas de si mesma.

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