São Paulo, terça-feira, 18 de abril de 1995
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O Diabo e os preços

ANDRÉ LARA RESENDE

Domingo passado, em entrevista à Folha, para refutar a afirmação de que há uma tendência conservadora entre os jovens católicos, d. Paulo Evaristo Arns diz que não há mais um padre que não seja contra o neoliberalismo. Segundo ele, vem aí uma geração que procura a justiça social. O neoliberalismo parece definido por oposição à justiça social.
Duas reflexões, aparentemente dissociadas, me ocorreram. Primeiro, qual a razão da dificuldade de entender e aceitar o mercado competitivo? O mercado competitivo é uma construção abstrata. Nada mais equivocado do que pretender que da ordem natural das coisas, da inexistência do Estado, as sociedades se organizariam de forma parecida com um mercado competitivo. Foram séculos de vida e reflexão para chegar ao ideal iluminista da racionalidade, dos direitos individuais e da igualdade entre os homens. O mercado competitivo é a mais sofisticada e antinatural concepção da forma de organizar as relações econômicas.
O funcionamento do sistema de preços no mercado competitivo é de uma rara beleza: uma teia viva de comunicação de sinais, uma agitação permanente que transmite um número infinito e não formalizável de informações dispersas. Informações que permitem a descoberta de preferências e de possibilidades desconhecidas, que conduzem um processo contínuo de tomada de decisões num universo de ignorância e desequilíbrio.
O mercado competitivo é a forma mais eficiente de organizar a sociedade para produzir, criar riqueza e cultura. É na distribuição da riqueza que o mercado competitivo deixa a desejar. Especialmente se o objetivo é a igualdade. O modelo competitivo pressupõe a igualdade de oportunidades, mas não a de resultados. Isto pode ser considerado injusto. Ainda assim, melhor continuar a recorrer ao mercado. Usar o fisco, da forma menos perturbadora possível para o sistema de preços, é a resposta correta.
Como um ideal-tipo antinatural e nunca atingível, aproximar-se do mercado competitivo exige entendimento e profunda convicção. Infelizmente, o sistema de preços competitivo é pouco compreendido. As decisões e as leis necessárias para desenhá-lo não parecem trazer benefício direto para ninguém. A maioria das vezes, ao contrário, parecem ser flagrantemente antipopulares.
Já longe, esboço minha segunda reflexão: Em "Can the Devil Be Saved", Leszeck Kolakowski argumenta que o drama cósmico e histórico não pode ser interpretado como um movimento em direção à reconciliação de todas as coisas. A noção do pecado original, de que o Diabo não pode ser convertido, significa que o mal não pode ser erradicado por completo. Há algo de incurável na nossa miséria. Esta constatação pode ser usada como um poderoso instrumento ideológico de resistência conservadora à mudança social e a toda tentativa de quebrar privilégios: o sofrimento é nosso destino, nada pode ser feito para melhorar a condição humana neste mundo.
D. Paulo é um testemunho vivo contra a desesperança. Só se pode fazer o que se faz porque se acredita possível o que não é. Será utópico propor que os homens de boa vontade entendam as possibilidades do sistema de preços e elejam o Diabo certo?

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