São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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Quatro sócios e um funeral

RICARDO SEITENFUS; DEISY VENTURA

RICARDO SEITENFUS E DEISY VENTURA
"Não há casamento sem lágrimas, assim como não existe enterro sem risos."
(Provérbio italiano)

Não é surpresa que o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul (Mercado Comum do Sul) em 1991, jamais seja cumprido. A impropriedade dos prazos e metas lá estipulados só foi menor que a natureza retórica e demagógica dos seus compromissos.
Apesar de tudo, o imberbe pôde dar os seus primeiros passos. Se ele continuará a caminhar é o que se discute, ontem e hoje, em Assunção, Paraguai, na reunião dos quatro sócios do Mercosul, provocada pelo Brasil.
Nessa ocasião, poderemos passar do voluntarismo diplomático de outrora, que foi pretensioso e por vezes imprudente, mas empreendedor, ao economicismo oportunista. A integração serviria, neste caso, apenas para uso retórico ou para atender a interesses pontuais e setoriais.
O primeiro trimestre de vigência do Mercosul trouxe duas situações de emergência envolvendo justamente seus sócios mais poderosos. A Argentina já havia solicitado, em março, o aumento do nível da TEC (Tarifa Externa Comum), debatendo-se numa grave crise, aparente consequência do colapso mexicano.
Agora é a vez do Brasil. O início do Mercosul, em 1º de janeiro de 95, coincide com a posse do novo presidente brasileiro, que deveria governar um país já em pleno processo de integração. Aparente avalista das difíceis negociações de dezembro de 94, que resultaram nos acordos de Ouro Preto (MG), Fernando henrique Cardoso ora protagoniza uma brusca mudança que ameaça não mais a forma, mas a essência do Tratado de Assunção.
O Brasil define como prioridades a luta contra o inesperado déficit da balança comercial e a defesa da estabilidade econômica, com a manutenção de baixos índices inflacionários. O Mercosul, caso venha a restringir a margem de manobra da equipe econômica, será visto como um obstáculo a tais objetivos maiores. Os compromissos devem ser reavaliados, então, à luz dos novos desafios. No redimensionamento, o protecionismo à indústria nacional encontra um aconchegante ninho.
Tomando como metáfora um jogo de futebol, é como mudar as regras do jogo em seus primeiros dez minutos. O Brasil, que sempre sustentou a idéia de uma lista mínima de exceções para a Tarifa Externa Comum, sugere que cada país possa aumentá-la em até 150 produtos. Isto representa, para Brasil e Argentina, a possibilidade de um incremento de 50% da lista básica de exceções. Propõe, igualmente, que produtos da lista possam ser substituídos, a cada três meses, por outros, sempre dentro do novo limite de 450 exceções.
Como compensação, o Brasil não aplicaria a abrupta taxa de 70% sobre as importações de eletrodomésticos e automóveis aos produtos originários do Mercosul. A medida traz impacto relativo, pois o setor automotriz já foi objeto de acordo paralelo na reunião de Ouro Preto.
O aspecto mais importante, contudo, é o desejo expresso pelo Brasil de guardar uma mínima margem de compromisso, podendo alterar condições importantes do mercado de acordo com suas necessidades momentâneas. O Mercosul das circunstâncias é uma temeridade para quem pensa em sérios investimentos e numa verdadeira integração. Resta perscrutar as razões que moveram esta mudança brasileira.
O período de transição (26 de março de 91 a 31 de dezembro de 94) foi marcado pelo extraordinário incremento do comércio regional e por importantes superávits brasileiros, especialmente com a Argentina. Este ambiente favorável para o comércio permitiu que se desenvolvesse, do lado brasileiro, um voluntarismo diplomático, que tentava materializar os inalcançáveis objetivos definidos pelo Tratado de Assunção.
A percepção de que o processo de integração não se restringe à política externa, mas constitui um elemento capital de política econômica, de abertura e desenvolvimento levou paulatinamente à transferência do centro de decisões sobre o Mercosul do Itamaraty para o Ministério da Fazenda e, agora, ao Ministério do Planejamento.
Desponta, desde então, a figura do ministro José Serra, que, durante o governo Itamar Franco, qualificava a forma de encaminhamento do Mercosul pela diplomacia brasileira como um devaneio. Avesso ao aumento do grau de compromisso entre os parceiros, Serra critica a "amarração", "uma perda de autonomia que não tem nada a ver com a abertura", e considera "completamente absurda" a idéia de introdução do Paraguai e do Uruguai no Mercosul, comparando o Brasil à China e o Uruguai ao Vietnã (Folha, 15/02/94, pg. 1-8).
Acreditava-se, na época, que a integração platina tinha na instabilidade econômica brasileira o seu principal adversário. Ironicamente, o Brasil, ao tornar-se estável, crê que não é possível integrar. É uma percepção realista quanto aos prazos e condições; mas, sem a definição de um maduro cronograma, as atuais medidas podem ser o remédio que mata o doente.
O desfecho da presente reunião não é difícil de prever. O chanceler paraguaio acredita que o Mercosul "não depende da estabilidade econômica da Argentina e do Brasil" (El Pais, 26/3/95). Mas o fato é que Uruguai e Paraguai são alvo fácil da barganha dos dois grandes.
A Argentina, por sua vez, encontra-se fragilizada, seja pela delicada situação econômica, seja pelo momento eleitoral, que não recomendam levantar a voz contra o Brasil. Após as eleições, todavia, Buenos Aires certamente terá outra percepção.
Infelizmente, o Protocolo de Ouro Preto não previu mecanismos que oportunizassem iniciativas dos Estados-partes quando suas economias estivessem sob circunstâncias emergenciais. A segurança e o índice de confiança do Mercosul ficam prejudicados pela reiterada necessidade de negociações de emergência, nas quais, sob o manto de um questionável consenso, coloca-se em risco o pouco já alcançado.
Uma margem ampla de discricionariedade aos sócios fragiliza o processo de integração. Somando-se a insegurança jurídica e o oportunismo, parece que o jovem Mercosul está dando seus mais recentes passos justamente no cortejo fúnebre de sua melhor versão.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 46, é doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra e coordenador do curso de mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS).

DEISY DE FREITAS LIMA VENTURA, 27, é professora do departamento de direito público e especialista em integração latino-americana pela UFSM. São autores do livro "O Mercosul para Todos", editora Livraria do Advogado (no prelo).

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