São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 1995
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De Sica e Fellini balizam o neo-realismo

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Existem mais ligações entre "Ladrões de Bicicletas", de Vittorio de Sica, e "8 1/2", de Federico Fellini, do que um olhar desavisado pode suspeitar, além do fato de serem duas obras-primas.
Há, primeiro, laços históricos. "Ladrões de Bicicletas" (1948) representa o auge do neo-realismo surgido na Itália destroçada do pós-guerra e "8 1/2" (1963) é o momento em que o cinema de Fellini, filho bastardo do movimento, liberta-se dele por completo.
Ou quase por completo. Pois, se há outra coisa que aproxima os dois filmes, é sua inspiração fundamentalmente humanista e cristã.
Claro que se trata, em cada caso, de um cristianismo distinto. Em "Ladrões de Bicicletas", melodrama social sobre um pregador de cartazes que tem seu instrumento de trabalho (a bicicleta) roubado, o que sobressai é a busca da dignidade do homem, massacrada por um mundo percebido como mecanismo cego e sem piedade.
O filme de De Sica transita do individual ao coletivo com a precisão de um ensaio marxista.
Logo na abertura, uma multidão se aglomera diante de um órgão público em busca de emprego. O funcionário grita um nome: Ricci, Antonio. Surge então surge o indivíduo (Lamberto Maggiorani), que será o protagonista do drama.
Logo depois, Ricci leva os lençóis de sua casa a uma casa de penhores. Entrega os panos no guichê e a câmera acompanha o pacote, que vai se juntar a incontáveis outros em pilhas abissais.
O sentido é claro: o drama de Ricci não é um caso isolado, há toda uma classe, todo um país em desespero.
A despeito dessa consciência coletiva, o olhar humanista de De Sica se interessa pelo indivíduo e sua integridade -física, psicológica, moral. O que realça essa preocupação é a relação entre Ricci e seu filho Bruno (Enzo Staiola), uma das mais comoventes da história do cinema.
O cristianismo de Fellini é de outra ordem. A carência de seus personagens não é de pão e trabalho, mas de sentido, de transcendência, de graça.
A essa outra aspiração corresponde outro tipo de realismo.
Se "Ladrões..." acredita ainda no mundo como organização objetiva e na capacidade do cinema de reproduzi-lo, em "8 1/2" (assim chamado porque o diretor já tinha feito sete longas e um curta) essa crença explode de vez.
O mundo é percebido como caos e movimento, e não há fronteira entre a subjetividade e a realidade objetiva.
O filme descreve a angústia de um cineasta, Guido (Marcello Mastroianni), às vésperas de iniciar uma nova produção. Acossado por produtores, roteiristas, atrizes, patrocinadores, que o perseguem até na estância hidromineral em que se refugiou, ele mistura o ambiente que o cerca às fantasias criativas e memórias de infância.
Como em Buñuel, não há separação entre as várias instâncias. Sonho, memória e "realidade" são vasos comunicantes.
Essa subversão do realismo clássico começa pela destruição do espaço cenográfico. Em "8 1/2" o ambiente se transforma continuamente. Escadas multiplicam potencialmente o espaço, ampliando-o para cima e para os lados.
Em movimento perpétuo, a câmera infringe todas as regras narrativas: vai da esquerda para a direita acompanhando um personagem, de repente detém-se e acompanha outro para o lado oposto.
Personagens entram em cena avançando pelas bordas do quadro em direção ao ponto de fuga, perturbando a simetria.
Isso tudo sem falar da cacofônica trilha sonora, com seus diálogos superpostos, suas marchas circenses misturadas a Wagner.
Fellini teria feito um mero espetáculo da dispersão se no centro de seu filme não houvesse um homem que, como ele, busca o sentido no caos, o sagrado no profano, o transcendente no imediato, o eterno no transitório. E o lugar onde essas coisas todas se encontram é a beleza em estado puro.

Vídeo: Ladrões de Bicicletas
Produção: Itália, 1948, 90 min.
Direção: Vittorio de Sica
Elenco: Lamberto Maggiorani, Enzo Staiola
Lançamento: Continental (tel. 011/284-9479)

Vídeo: 8 1/2
Produção: Itália, 1963, 133 min.
Direção: Federico Fellini
Elenco: Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée
Lançamento: LK-Tel (tel. 011/825-5766)

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