São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 1995
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Vingança

MOACYR SCLIAR

Quando leu a notícia, sentiu um baque no coração. Aquela mulher, Selma Regina de Jesus, condenada por ter relações sexuais sem avisar aos parceiros que era portadora do vírus da Aids -aquela mulher ele conhecia. E não apenas conhecia: estivera com ela. Lembrava bem da cena: ele dirigindo o seu caminhão à noite, a mulher abanando-lhe da beira da estrada. Nem pensou: parou o veículo, mandou que ela subisse.
Não era a primeira vez. O banco do meu caminhão é como cama de motel, costumava dizer aos amigos. De fato, não havia semana que não botasse uma mulher para dentro da cabine. Eram tantas que não lembrava nomes nem rostos.
Mas aquela Selma lhe parecia familiar. Seria a mulher que lhe abanara da beira da estrada? A prostituta da notícia certamente era disso, de pegar homem a qualquer hora e a qualquer lugar. Seria a Selma, ela? Selma Regina de Jesus, 36 anos, condenada a um ano de prisão?
O diabo é que ele não lembrava. Por mais que tentasse, não conseguia lembrar. Mesmo porque, naquela maldita noite (agora já era maldita noite), ele tinha tomado umas cervejas. Conseguia dirigir bêbado; o que não conseguia era -bêbado- lembrar de uma mulher que botara para dentro do caminhão. Que bem podia ser uma portadora do vírus da Aids. Ah, cadela, rosnou ele, se eu soubesse.
E agora? O que fazer agora? Pensou em procurar imediatamente um médico, em fazer o exame; mas para quê? O que faria, se estivesse com o vírus? Sua vida se transformaria num inferno; a cada momento estaria olhando-se no espelho, buscando manchas nos braços e nas pernas.
Não. Ele não faria nada disto. A vida é muito curta para a gente se preocupar, dizia aos amigos, e vivia de acordo: não casara, não tinha filhos, não queria se amarrar a ninguém. Queria andar pelas estradas no seu caminhão, parando nos restaurantes para comer bem e tomar muita cerveja -e, naturalmente, pegando mulher em estrada. Mulheres cujo nome ele jamais perguntava. Selma? Certamente muitas delas se chamavam Selma.
O que faria, daí por diante, era exatamente o que vinha fazendo. Sem mulher não podia passar. Se pegassem a doença -problema delas. Não se importava. Como aquela tal Selma -mas era mesmo a Selma?- não se importara com ele.
No fundo -e uma espécie de júbilo se apossou dele- estava se vingando. E não só daquela Selma, se é que se tratava da Selma; estava se vingando de todas as mulheres que o haviam sacaneado, de uma namorada (como era mesmo o nome?) que o trocara por outro, da mãe que o abandonara quando era pequeno, deixando-o com uma tia que o maltratava sem parar.
Vingança, sim. Ele agora era uma verdadeira bomba, uma bomba como essas que os terroristas jogam -uma bomba humana. Uma bomba que ia liquidar muitas safadas. Bem feito. Bem feito.
E de repente começou a chorar. Vingança? Não, ele não queria vingança. E não queria mulher alguma. Queria a sua mãe, a sua mãezinha, morta há tempos -sabe-se lá de que doença.

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