São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 1995
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Desordem

OTAVIO FRIAS FILHO

Atentados, seitas, bombas, Fujimori: ninguém pode dizer que o mundo não vive, também do ponto de vista político, uma fase de livre-mercado. A previsibilidade da Guerra Fria, sua solene rigidez, foi substituída por esse Woodstock ideológico em que leninismo se mistura a tarô.
Difícil encontrar um fato novo que não tenha a ver, diretamente ou não, com o desaparecimento da União Soviética. Ela dava ordem ao mundo, ela fixava um parâmetro, utópico ou monstruoso, em torno do qual tudo girava. E se não há União Soviética, então tudo é permitido.
Claro que quando ela acabou, a reação geral foi dizer "já vai tarde". Pela lógica peculiar do raciocínio revolucionário e, em seguida, da razão de Estado, as aspirações mais nobres haviam trocado de lugar com as mais baixas. Era horrível viver no paraíso.
As revelações que apareciam nas "Seleções" do "Readers Digest", nos anos 50 e 60, não diferiam muito dos relatos que autores trotskistas fizeram 20 anos antes. Quando visitou o Brasil, o dramaturgo alemão-oriental Heiner Mueller, um cínico aparentemente apolítico, chegou a dizer que na sua opinião Stalin era pior do que Hitler.
Um filme russo em exibição, "O Sol Enganador", exuma a era soviética como se ela já tivesse 200 anos. É um filme mediano, convencional, que ganhou até Oscar de obra estrangeira. O interesse é mitológico: a estrela vermelha, a "aurora do socialismo", o contraste entre a máquina policial em formação e a bucólica, tchekhoviana, como disseram os críticos, vida no interior.
Cláudio Abramo, simpatizante do trotskismo mas orgulhoso da existência da União Soviética, voltou de sua primeira visita a Moscou, já no fim dos anos 70, elogiando o viço das hortaliças e o vigor das mulheres, ou vice-versa. Como muitos outros, ele achava que um dia as mazelas do socialismo seriam superadas.
Superar, no jargão da época, era andar para a frente, não para trás. Ou seja, conforme as resistências diminuíssem, o socialismo se humanizaria. O próprio Trótski considerava a URSS como uma bandeira adiantada; o mundo inteiro seria socialista ou então nenhuma parte.
Quando Gorbatchov surgiu, o pensamento de esquerda viu o desabrochar de mil possibilidades, era a "superação" do stalinismo, finalmente. Logo se percebeu, a contragosto, que ele era um Kerenski ao contrário, que devolveria -como devolveu- o país dos sovietes ao capitalismo.
Fomos levados, como sempre, pelas ilusões de retórica. No futuro, talvez algum dicionário explique o verbete socialismo apenas assim: "centralização política e econômica que permitiu a certos países atrasados do século 20 se industrializarem artificialmente."
Como todo inferno que se preze, a União Soviética dava um sentido à vida, que muitos perderam, ao passado e ao futuro. Sem ela, cada um chama a si o seu próprio destino, o que parece ótimo. Mas a libido da insurreição, por assim dizer, explode também em formatos muito mais extravagantes do que "as rubras flores de Outubro" do poeta Maiakóvski.

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