São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 1995
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Ao crime organizado, a lei desorganizada

ALBERTO S. FRANCO; ALBERTO Z. TORON; LUIZ FLÁVIO GOMES

Essa lei prestará a mais impactante contribuição para o definhamento do Estado Democrático
ALBERTO S. FRANCO, ALBERTO Z. TORON e LUIZ FLÁVIO GOMES
Desde 1989 o Congresso Nacional discute quais seriam os meios operacionais e legais mais adequados à prevenção e repressão ao crime organizado no país. Seis anos depois (tempo mais que suficiente para estudar profundamente o assunto, tirando proveito inclusive da experiência estrangeira), acaba de remeter seu texto legislativo para sanção presidencial.
A carência de técnica, de imaginação, de competência e de seriedade está na mesma proporção da imperiosa necessidade de uma lei que discipline tão tormentoso problema social.
Por todos os lados constata-se que uma das maiores inquietações do homem moderno consiste na perda de credibilidade e confiança no direito. O direito vive, talvez, sua pior e mais intensa crise. E não é para menos! Caso não seja vetada "in totum", essa lei prestará a mais impactante contribuição para o definhamento da ciência jurídica brasileira e do próprio Estado democrático de Direito.
O propósito é "combater" as "organizações criminosas", mas a lei nem sequer as define. Não se sabe, assim, ao certo, qual seria o "inimigo" a ser combatido! Em certo momento (art. 1º) chega a confundir "organização criminosa" com "quadrilha ou bando", o que é deplorável, porque criminologicamente os conceitos são distintos.
A infiltração de agentes da polícia em quadrilhas ou bandos é medida fadada ao fracasso. Uma das primeiras "provas" a que o novato deve se submeter, para seu ingresso no grupo, é o cometimento de crimes; a lei (como não poderia ser de outra forma) só favorece o "infiltrado" na não-punição do crime de quadrilha ou bando. Isso significa que ele responde pelos demais delitos que vier a cometer. Existirá alguém disposto a isso?
A "ação controlada" (faculta que o policial intervenha no momento que julgar mais oportuno), como é algo muito "subjetivo", fora do conhecimento do juiz, pode servir de fonte de corrupção. De outro lado, como destacou o prof. Damásio E. de Jesus, em parecer emitido ao Conselho de Política Criminal, "o policial, acusado de prevaricação, argumentará que sua omissão deveu-se à espera de momento oportuno para agir".
A determinação de o juiz de direito "pessoalmente" colher dados fiscais, bancários, financeiros e eleitorais, devendo ademais "pessoalmente" lavrar o auto da diligência, sem a intervenção de qualquer funcionário, e conservar "fora dos autos" os registros da prova encontrada, significa uma inominada aberração jurídica, de inconstitucionalidade patente.
Primeiro, porque não é tarefa constitucional do juiz colher prova fora do devido processo legal. Segundo, porque, se isso fosse permitido (com o que estaríamos introduzindo o juizado de instrução no Brasil), jamais o mesmo juiz (de quem se exige imparcialidade) poderia ser o presidente do processo. Por fim, há patente conflito com o princípio da publicidade.
Por inspiração do direito italiano, onde prosperou a chamada "Operação Mãos Limpas", insiste o legislador na "delação premiada", isto é, o integrante da "organização" que denunciá-la eficazmente ganha a redução de até dois terços da pena.
Esse instrumento já não funcionou na Lei dos Crimes Hediondos e não funcionará agora: o prêmio penal desacompanhado de outras garantias, principalmente de vida, é inútil.
A proibição de concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, tenta reintroduzir no direito brasileiro, de forma inconstitucional, a totalitária "prisão cautelar obrigatória", extinta em 1967, no tempo da ditadura militar.
A possibilidade de a prisão processual estender-se por até 180 dias quebra a tradição jurídica brasileira e viola o direito de todo acusado de ser julgado em tempo razoável. A proibição do direito de apelar sem se recolher à prisão não só conflita com a garantia do duplo grau de jurisdição, senão também com o direito internacional (cfr. Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 8, nº 2, "h").
Trata-se de texto mal elaborado, tecnicamente falho e imaginativamente pobre porque não adota medidas internacionalmente recomendáveis para o "controle" do crime organizado, como a disciplina da interceptação e escuta telefônica, tratados de cooperação internacional, responsabilidade penal da pessoa jurídica, crime de "lavagem" de dinheiro ilícito, confisco de bens, pena de perda de bens etc.
Por paradoxal que possa parecer, um dos únicos pontos positivos da lei reside, ao contrário do que se passa na Lei dos Crimes Hediondos, no abrandamento do regime carcerário fechado, em atenção ao princípio da individualização da pena.

ALBERTO SILVA FRANCO, 62, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, é presidente de honra do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e diretor da "Revista Brasileira de Ciências Criminais".

ALBERTO ZACHARIAS TORON, 35, advogado criminalista, é presidente do IBCCrim e do Conselho Estadual de Entorpecentes.

LUIZ FLÁVIO GOMES, 37, juiz de direito em São Paulo, é mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e autor de "Direito de Apelar em Liberdade", entre outros livros.

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