São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 1995
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Vienense gira mundo em busca do café ideal

PAUL HOFFMAN
DO "TRAVEL/THE NEW YORK TIMES"

Erramos: 20/04/95
Sendo um vienense que, na juventude, passou bastante tempo em cafeterias, desde aquela época continuo a buscá-las em minhas viagens pelo mundo.
Descobri algumas nos lugares mais improváveis. Uma delas no que é hoje Kinshasa, Zaire. Na época, em 1960, era Leopoldville, perto dos Correios.
Tratava-se na realidade de uma sorveteria, mas servia um café forte, tinha mesas na calçada e, naquele repentino pôr-do-sol tropical, algo assim como uma atmosfera de embriaguez.
O café Fink, na rua Hahistadruth, em Jerusalém -que também não é estritamente uma cafeteria, mas um bar com um pequeno restaurante-, combinava tranquilidade e animação.
Em toda parte, viajando fora da Europa, descobri cafeterias, casas de chá, brasseries, pizzarias, tavernas e afamados antros de bebedores que normalmente não passam de bares excessivamente decorados em hotéis caros. Uma cafeteria é algo mais.
Em primeiro lugar, o centro das atenções precisa ser o café, ainda que bebidas alcoólicas também sejam servidas.
Ser aconchegante é outro requisito: o lugar precisa ter aquele indefinível conforto, que pode muito bem ser acompanhado, e quem sabe até acentuado, por certo grau de desleixo -tapetes puídos, balcões levemente engordurados, papel de parede esmaecido.
O teste definitivo da autenticidade de uma cafeteria é a tranquilidade. Depois de pedir sua bebida, você não deve ser perturbado.
Pode acalentá-la por horas a fio, pedir uma fatia de bolo, rabiscar o esboço do apartamento ideal no tampo de mármore de sua mesa, jogar conversa fora com os amigos, flertar, mergulhar em devaneios, escrever um roteiro, ler.
Na Europa Central, uma cafeteria fornecerá gratuitamente os jornais do dia e as revistas mais recentes.
Literatura
Muita literatura floresceu em cafeterias. Nicolai Gogol escreveu grande parte das "Almas Mortas" no Anticco Caffè Greco da Via Condotti, em Roma.
A casa, com decoração do início do século 19, mesas de mármore negro e garçons de sobrecasaca, ainda existe: é um marco histórico.
O livro de ouro guarda as assinaturas de Stendhal, Baudelaire, Wagner e Liszt.
Em meados da década de 50, Giuseppe di Lampedusa ia todas as manhãs ao Caffè Mazzara, na Via Generale Magliocco, ou ao Caffè Caflisch, na viale della Libertà, em Palermo, para trabalhar no romance "O Leopardo".
Em Praga, em frente ao velho terminal ferroviário, o Arco tinha entre seus frequentadores assíduos Franz Kafka e seu amigo Max Brod, o romancista Franz Werfel e outros escritores e intelectuais. Ácido, o ensaísta Karl Kraus apelidou-os de "os arconautas".
Inúmeros "littérateurs" buscaram refúgio nos cafés da Rive Gauche, em Paris.
Hoje, o Aux Deux-Magots e o Café de Flore em St.-Germain-des-Prés são frequentados sobretudo por turistas.
Todas as manhãs, um jornalista amigo meu passava uma hora debruçado sobre seu café cremoso num terraço envidraçado do Boulevard des Capucines, na margem direita do Sena.
Dizia captar por lá o espírito dos franceses, muito mais do que em um dia inteiro de coletivas de imprensa, entrevistas, telefonemas e notícias das agências.
Solidão
Alfred Polgar, que por muitos anos burilou seus brilhantes ensaios e críticas no Café Central de Viena, dizia que as cafeterias eram feitas para pessoas que querem ficar sozinhas, mas precisam de companhia para isso.
Já para amantes e casais casados, seriam "o refúgio ideal contra os terrores da solidão a dois".
Mais tarde, Polgar exilou-se em Los Angeles, saudoso do Café Central. Finalmente, emigrou para Zurique, instalando-se no Café Odeon de Limmatquai.
James Joyce, Richard Strauss e W. Somerset Maughan também eram habituês. Nunca deixo de ir ao Odeon quando vou a Zurique.
Também estão entre minhas favoritas as casas ruidosas em torno do Rossio, no centro de Lisboa: o café é excelente.
Em Budapeste, prefiro as duas salas do Ruszwurm, em Buda Casyle, à grande casa Gerbeaud da praça Vorosmarty.
Com 168 anos de idade, colunas neoclássicas, detalhes em estuque (massa preparada com gesso, água e cola) e cadeiras Biedermeier de bambu, o Ruszwurm transborda de atmosfera.
A elegante Gerbeaud, com seu grande terraço ao ar livre, é uma confeitaria que serve café e chá.
Em Salzburgo sou atraído pelo Tomaselli, frequentado pelo pai de Mozart, e ao Glockenspiel, na Mozartplatz.
Em Veneza, na praça de São Marcos, o venerável Caffè Florian, com suas muitas mesinhas na "piazza" nos meses de calor, e seu interior austero, nos dias nublados de inverno, dá aos visitantes exaustos das caminhadas pelas pontes dos canais a chance de recuperar o fôlego.
Na vizinha Pádua, em frente à antiga universidade, o Caffè Pedrocchi -com 163 anos de idade, guardado por leões de pedra à frente de suas nobres colunas dóricas- é outro marco glorioso.
Em Trieste, no Caffè degli Specchi da praça Unità d'Italia, sempre tenho a sensação de estar de volta a Viena.
Viena
Em minha cidade natal, uma das velhas cafeterias ainda em funcionamento é a Prueckl, na Stubenring.
Antes das provas, meus amigos e eu costumávamos promover ali animadas reuniões; jogávamos xadrez, dávamos e recebíamos telefonemas e cortejávamos as garotas (raramente com sucesso).
O velho garçom, Ferdinand, tinha artrite no ombro e muitas vezes resmungava para si mesmo, mas sempre nos trazia outra pilha de jornais em hastes de bambu.
Ele enchia nossos copos com água e buscava a enciclopédia de que precisávamos para solucionar aquele complicado problema de palavras cruzadas.
Em um enfumaçada sala dos fundos, pessoas que para nós pareciam fósseis jogavam "rummy" e bridge infinitamente.
Para dar umas risadas, sempre que tínhamos dinheiro descíamos ao teatro no subsolo do Prueckl, onde uma trupe rústica, com sotaques tiroleses falsificados, apresentava paródias de antigos dramas populares de cavalaria.
Nesses dramas, cavaleiros de armadura invariavelmente resgatavam donzelas de rabo-de-cavalo e aplicavam horríveis castigos a barões ladrões, diabólicos e lascivos.
Inacreditavelmente, ainda há performances semelhantes no subsolo do Prueckl.
Jogadores de cartas continuam a lotar a sala dos fundos, mas eles já não parecem velhos para mim, assim como o sucessor de Ferdinand.
O Prueckl é uma das poucos sobreviventes entre as muitas cafeterias que se enfileiravam na Ringstrasse, o bulevar em formato de ferradura que abraça o coração da cidade histórica.
Outra delas é a luminosa Landtmann, em frente à Universidade de Viena, onde Sigmund Freud ocasionalmente jogava "tarok", seu carteado favorito, com seus amigos acadêmicos.
O Imperial, perto da Ópera e preferido de Gustav Mahler, também continua firme.
O Café Museum, perto da Academia de Arte, onde "moravam" Egon Schiele e Elias Canetti, está agradavelmente velhinho e lota de estudantes.
O Café Central de Polgar, na Herrengasse, reabriu há alguns anos, redecorado.
Em uma mesa perto da entrada existe hoje uma estátua em tamanho natural de Peter Altenberg, outro célebre ensaísta que praticamente vivia na cafeteria e fazia lá suas refeições.
Trotsky jogava xadrez no Central antes da revolução russa; Robert Musil, Hermann Broch, Werfel e outros escritores também faziam parte da clientela.
Hoje, apesar dos aluguéis, dos altos custos trabalhistas e da televisão -que mantém muita gente em casa à noite-, Viena ainda se orgulha de ter 1.500 cafeterias.
Em Roma há o adorável estímulo de 6.000 casas de "espresso", muitas com poucas mesas.
Em minha última temporada em Nova York, gastei um bom tempo sorvendo cappuccinos nas cafeterias que floresceram na Park Avenue South, no Soho, no Upper West Side e no Times Square, deixando a imaginação correr livre.
Vivas cafeinados à invasão do "espresso" de máquina italiano com um leve toque dos cafés franceses. Quem sabe não vêm por aí o "strudel" e o creme batido?

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