São Paulo, sábado, 22 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ulysses Cruz aprende a rir com um texto menor de Shakespeare

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Péricles" começa como mais uma daquelas montagens de Ulysses Cruz. Panos pretos, longos bastões, interpretações empostadas em que os atores parecem perder o fôlego e fungam desesperadamente diante da responsabilidade de estar falando Shakespeare.
Mais à frente, passos de luta marcial. Fumaça por todo lado. Tudo indica "Macbeth 2", o segundo sono.
Mas aos poucos, conforme "Péricles" vai escapando da trama de incesto que abre a peça, a montagem vai-se revelando diversa daquelas montagens de Ulysses Cruz. Começa por Cleyde Yáconis, no papel do narrador Gower, tirando nuances cômicas do texto de Shakespeare.
Entram depois os clowns conhecidos de toda peça elisabetana, desta vez como pescadores que retiram Péricles do mar. Mais à frente, são três cortesãos que a encenação apresenta como gays, fazendo fofocas e observações maldosas sobre Péricles e outros cavalheiros em luta pelo amor de uma jovem.
A montagem ganha ritmo e o humor se instala, ao lado de um certo romantismo.
Mas não adianta. Não há nada mais aleatório na obra de Shakespeare do que este "Péricles" que parece ter começado por uma razão, passado a outra e a outra, para terminar com uma costura sem nexo. A peça não leva a lugar algum.
As viagens de Péricles pelo mar se repetem, enquanto personagens centrais se perdem e são mortos como em alguma telenovela que precise mudar o elenco.
A pergunta é quase inevitável, por que produzir um Shakespeare menor? Não é suficiente o argumento de que a peça jamais foi produzida no Brasil.
Mas o espetáculo vai em frente, sem sentido e cada vez melhor. Tropeça aqui e ali em coreografias pouco trabalhadas e contidas no despreparo do elenco, o que não importa. É apenas um quadro, um número, entre os tantos de "Péricles".
Logo a montagem se levanta em novo quadro, do hilário rei Simonides e suas tiradas sobre os apaixonados Péricles e Thaisa, sua filha. Inesperadamente, a partir de um texto fraco e limitado diante de "Macbeth", Ulysses Cruz vai tirando mais, trabalhando em maior detalhe.
"Péricles" é uma montagem consciente das exigências do entretenimento e da diversidade.
E que se esforça por dar prazer, antes de mais nada. Mais do que números de circo, que estão lá, em adequada integração ao espetáculo, "Péricles" traz o próprio circo, menos em forma do que em espírito. Isso é inédito, em se tratando de Ulysses Cruz. Mas o tom farsesco que impregna todo o espetáculo também tem o seu preço.
Nas passagens de maior melodrama, pois é de melodrama que se trata e jamais de tragédia, "Péricles" segue tirando risos do público, descontroladamente.
É assim ao anunciar-se a morte de Thaisa, o grande amor de Péricles, em trabalho de parto, no mar. "Senhor, no porão tem um caixão à prova d'água", diz um marinheiro ao príncipe, derrubando a platéia em gargalhadas.
Mudanças de tom
Seria talvez o caso de dominar melhor as mudanças de tom, na sintonia fina da direção. Ou não, como parece indicar mais à frente uma cena de sintonia grossa, a cena descontrolada do bordel dirigido por Cláudia Mello -em interpretação escrachada e livre, sem nada do rigor físico exigido de outras atuações da peça, sempre as mais fracas.
Também na tradução, evidencia-se nesta passagem a inesperada irreverência de Ulysses Cruz, com expressões tiradas abertamente do presente. Em sua cena relativamente curta, Cláudia Mello tem passagens memoráveis e é quem dá a marca do espetáculo no palco, ao lado de Cleyde Yáconis, esta com uma empatia incomum e uma voz cheia, encorpada, que embala a história.
À vontade em cena, as duas atrizes surgem como o contrário de Leonardo Brício, assustado com o seu Péricles, que imagina ser, ao que parece, um personagem trágico da estatura dos maiores de Shakespeare. Não é.
Péricles é papel menor, com desenho e diálogos pobres, que exige criação extra por parte do intérprete, como aliás acontece com as atrizes citadas.
Por fim, o figurino e a cenografia de Hélio Eichbauer acompanham a farsa. Imagens clássicas, das máscaras do teatro grego à figura da deusa Diana, das roupas "de época" aos grafismos dos escudos e bandeiras, surgem recicladas como em alguma ópera extravagante do romantismo.
Ao mesmo tempo, muita praticidade nos blocos móveis de cenário, nas velas e bastões. Também o grandioso Hélio Eichbauer, afinal, parece estar aprendendo sobre a simplicidade e o humor.

Peça: Péricles, Príncipe de Tiro
Quando: De quarta a sexta, às 20h30, sábado e domingo, às 16h30 e 20h30
Onde: Teatro Popular do Sesi (av. Paulista, 1.313, tel. 284-9787)
Quanto: entrada franca

Texto Anterior: Cultura exibe 'Jornada do Pavor', um dos mistérios de Orson Welles
Próximo Texto: Ingressos para o Nescafé estão à venda a partir de segunda-feira
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.